Abordagem prática de feridas crônicas na atenção primária

Abordagem prática de feridas crônicas na atenção primária

Introdução

Como identificar e manejar feridas que não cicatrizam na atenção primária à saúde? Feridas crônicas demandam diagnóstico diferencial rápido, documentação precisa e intervenções que vão além da troca de curativos — especialmente quando há comorbidades como diabetes e doença vascular. Este texto traz uma abordagem prática, focada em avaliação, manejo e critérios claros de encaminhamento, útil para médicos e enfermeiros na APS.

Avaliação inicial: o que não pode faltar

Uma avaliação sistemática orienta decisões terapêuticas e o momento do encaminhamento. Na primeira consulta, concentre-se em história clínica, fatores de risco e exame local.

Itens essenciais da anamnese

  • Tempo de evolução da ferida e tratamentos já realizados.
  • Comorbidades: diabetes, insuficiência venosa, doença arterial, insuficiência cardíaca, imunossupressão.
  • Medicações que interferem na cicatrização (corticóides, anticoagulantes, agentes imunossupressores).
  • Sinais sistêmicos: febre, calafrios, perda de apetite ou piora funcional.
  • Aspectos sociais e nutricionais: suporte domiciliar, acesso a curativos e ingestão proteica.

Exame da lesão — documente sempre

  • Medidas (comprimento, largura, profundidade) e fotografia seriada quando possível.
  • Margens (induradas, elevadas), leito (granulação, necrose, fibrina) e tipo/quantidade de exsudato.
  • Sinais de infecção local (eritema, calor, edema, aumento de dor) e sinais de infecção profunda (secreção purulenta, odor fétido).
  • Avaliar perfusão local: pulso periférico, capilaridade e, quando disponível, índice tornozelo-braquial (ABI).
  • Testes específicos: sensibilidade/neuropatia nos pés (monofilamento) em diabéticos.

Protocolos clínicos práticos podem ajudar a padronizar a avaliação na APS; veja proposta de protocolo para manejo de úlceras crônicas para referência local e organização do fluxo de trabalho.

Manejo na atenção primária: intervenções centrais

O manejo de feridas na APS foca em preparar o leito, controlar infecção quando indicada, corrigir fatores sistêmicos e selecionar coberturas adequadas. Abaixo, ações práticas e baseadas em evidência para uso cotidiano.

Cuidados locais e curativos

  • Higienização com solução salina; evite antissépticos agressivos de rotina que prejudiquem células de cicatrização.
  • Desbridamento de tecido necrótico sempre que possível: mecânico ou enzimático na APS; desbridamento cirúrgico ou especializado quando extensivo ou invasivo.
  • Escolha de curativos com base no objetivo: controle de exsudato, manutenção de ambiente úmido e proteção contra contaminação. Ex.: espumas para exsudato moderado/alto; hidrogel para tecido seco ou necrose fibrinosa.
  • Offloading em pé diabético e medidas de alívio de pressão em úlceras de pressão (anti-escara e orientação postural).

Controle de infecção e uso de antimicrobianos

Reserve antibiótico sistêmico para infecção clínica demonstrada ou sinais de celulite/progresso sistêmico. Para infecções superficiais localizadas, considere antissepsia tópica, mas priorize sempre a avaliação e o desbridamento. A prescrição racional de antimicrobianos evita resistência — integre práticas locais de uso de antibióticos na sua unidade.

Correção de fatores sistêmicos

  • Glicemia: otimização do controle glicêmico em pacientes com diabetes é fundamental.
  • Avaliação nutricional: repor calorias e proteína quando há deficiência; avaliar deficiência de micronutrientes se indicado.
  • Rever medicações impeditivas da cicatrização quando possível (ex.: doses altas de corticosteroides).

Para protocolos e estratégias educativas na APS, vale consultar a prática «Descomplicando feridas» desenvolvida em iniciativas de saúde pública.

Critérios clínicos para encaminhamento

Decidir encaminhar depende da severidade, risco de complicações e recursos locais. Encaminhe quando houver:

  • Sinais de infecção sistêmica (febre, taquicardia, leucocitose) ou suspeita de osteomielite.
  • Isquemia crítica, gangrena ou dor isquêmica persistente (possível necessidade de avaliação vascular/angioplastia/ cirúrgica).
  • Ferida com suspeita de neoplasia ou bordas atípicas/fenótipo suspeito.
  • Falta de resposta após abordagem adequada na APS (por exemplo, sem melhora objetiva em 4 semanas) ou deterioração progressiva.
  • Necessidade de terapias avançadas: desbridamento cirúrgico extenso, terapia por pressão negativa, enxertos ou avaliações multidisciplinares especializadas.

Fluxos e comunicação no encaminhamento

Inclua no encaminhamento: histórico breve, medidas realizadas, fotografias seriadas, resultados de exames (glicemia, hemograma, cultura se disponível) e justificativa clínica. Um encaminhamento bem documentado acelera avaliações por equipe multidisciplinar e reduz retrabalhos.

Papel da equipe multidisciplinar e educação continuada

O manejo efetivo depende da integração entre profissionais na APS e secundários. Exemplos de contribuição por área:

  • Enfermagem: triagem, troca de curativos, documentação e educação do paciente/família.
  • Médicos de família/APS: diagnóstico, coordenação do cuidado, ajustes terapêuticos e decisões de encaminhamento.
  • Vascular e cirurgia: avaliação de perfusão e procedimentos revascularizadores.
  • Endocrinologia/diabetologia: otimização do controle glicêmico.
  • Nutrição, fisioterapia e podologia/ortopedia: suporte para cicatrização, offloading e reabilitação.

Educação de profissionais aumenta a adesão a protocolos. Revisões sobre a atuação do enfermeiro e propostas de protocolos locais descrevem modelos de atenção e capacitação no contexto da APS.

Recursos e referências práticas

Para implementação e atualização de fluxos na sua unidade, considere consultar materiais e protocolos disponíveis: a proposta de protocolo clínico para manejo de úlceras crônicas que auxilia a padronizar avaliações e condutas, a revisão integrativa sobre o papel do enfermeiro no cuidado de feridas crônicas e a iniciativa prática Descomplicando feridas com estratégias aplicadas em atenção primária.

Leituras recomendadas (selecionadas do resumo):
proposta de protocolo clínico,
revisão integrativa sobre atuação do enfermeiro e
estratégia “Descomplicando feridas” da Fiocruz.

Fechamento e orientações práticas

Na atenção primária, organização do fluxo (avaliação padronizada, documentação fotográfica, plano terapêutico e critérios de encaminhamento) e comunicação ativa com níveis superiores são determinantes para melhores desfechos. Use checklists rápidos na sua unidade, capacite a equipe de enfermagem para triagens e trocas de curativos e revise periodicamente os protocolos locais. Quando em dúvida sobre perfusão, infecção profunda ou neoplasia suspeita, encaminhe sem demora.

Leve para a prática: implemente um formulário de avaliação padronizado, registre fotografias seriadas no prontuário, priorize controle glicêmico e nutrição, e estabeleça rotinas de revisão em equipe. Assim, você melhora a qualidade do cuidado das feridas crônicas na atenção primária à saúde e otimiza o encaminhamento de pacientes que realmente necessitam de atenção especializada.

Conteúdos relacionados no blog: cuidados de pele e feridas no consultório, úlcera por pressão: sinais e manejo, telemonitoramento do pé diabético e uso racional de antibióticos na prática clínica.

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