Este artigo, direcionado a profissionais de saúde na atenção primária, aborda a Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP) com foco em diagnóstico, avaliação do risco cardiometabólico e estratégias práticas de manejo. A SOP é comum em mulheres em idade reprodutiva e está associada a anovulação, hiperandrogenismo e disfunções metabólicas. Compreender os fenótipos, o risco de resistência à insulina e a associação com síndrome metabólica é crucial para prevenir complicações e melhorar a qualidade de vida.
Contexto clínico e relevância na prática diária
A prevalência da SOP varia entre 8% e 12% conforme os critérios diagnósticos. Além dos sintomas reprodutivos e androgênicos, a SOP aumenta o risco de diabetes tipo 2, dislipidemia, hipertensão e comprometimento da saúde mental. Na atenção primária, o médico de família ou clínico geral desempenha papel central na triagem, estratificação do risco cardiometabólico, orientação sobre estilo de vida e encaminhamento quando necessário.
Definição, critérios diagnósticos e fenótipos
O diagnóstico de SOP geralmente requer pelo menos dois dos três critérios: oligo-ovulação/anovulação, hiperandrogenismo clínico ou bioquímico, e imagem ovariana compatível com ovários policísticos, após exclusão de causas alternativas (hiperplasia adrenal congênita, tumor secretor de andrógenos, hiperprolactinemia, hipotireoidismo, síndrome de Cushing). Em adolescentes, é fundamental diferenciar alterações normais da menarca de SOP para evitar diagnósticos precipitados.
Critérios diagnósticos e exceções
- Oligo-ovulação/anovulação: ciclos irregulares com intervalos > 35 dias entre ciclos ou menos de 8–9 menstruações/ano em mulheres em idade reprodutiva.
- Hiperandrogenismo: presença de hirsutismo, acne moderada/grave ou alopecia com padrão androgênico, ou elevação de andrógenos séricos.
- Imagem ovariana: ultrassonografia com padrão poliquístico (p.ex., número de folículos e/ou volume ovariano aumentado), sempre correlacionada ao quadro clínico.
O reconhecimento do fenótipo ajuda a individualizar o tratamento: fenótipos com anovulação + hiperandrogenismo tendem a ter maior risco metabólico e resistência à insulina, influenciando a escolha terapêutica.
Avaliação cardiometabólica na SOP
Pacientes com SOP exigem avaliação sistemática do risco cardiometabólico. Identifique fatores de risco tradicionais e avalie peso, circunferência da cintura, pressão arterial e hábitos de vida.
Rastreamento e estratificação de risco
- Glicose: glicemia de jejum e, quando indicado (ex.: suspeita de intolerância), teste de tolerância oral à glicose (OGTT). HbA1c pode ser usada na avaliação de risco glicêmico em estágios estáveis.
- Perfil lipídico: avaliar LDL, HDL e triglicerídeos para estratificar risco aterosclerótico.
- Pressão arterial: aferições periódicas com metas e condutas conforme diretrizes locais.
- Circunferência da cintura e índice de massa corporal (IMC): mensurar o componente abdominal do risco metabólico.
- Resistência à insulina: marcadores diretos não são obrigatórios na APS; glicemia, HbA1c e perfil lipídico costumam guiar o manejo inicial.
Intervenções no estilo de vida (perda de peso, atividade física e alimentação) trazem impacto significativo sobre a resistência à insulina e reduzem risco de progressão para diabetes e síndrome metabólica. Para leitura complementar sobre síndrome metabólica, veja o post sobre síndrome metabólica na prática clínica.
Estratégias de manejo na atenção primária
O manejo deve ser individualizado conforme sintomas predominantes, objetivos reprodutivos, idade, peso e comorbidades. Combine intervenções não farmacológicas e farmacológicas quando indicado.
Ações não farmacológicas: estilo de vida, dieta e atividade física
- Perda de peso: redução de 5–10% do peso corporal melhora ovulação, reduz hiperandrogenismo e melhora perfil metabólico; metas gradativas são preferíveis.
- Atividade física: recomenda-se ≥150 minutos/semana de exercício aeróbico moderado, mais treino de força 2–3 vezes/semana para melhorar sensibilidade à insulina.
- Nutrição: priorizar alimentos com baixo índice glicêmico, fibras e proteínas magras, reduzir açúcares simples e refeições processadas.
- Apoio psicossocial: avaliar ansiedade e depressão, encaminhar para suporte quando necessário para melhorar adesão terapêutica.
Para educação em adesão e autocuidado, consulte o material sobre educação terapêutica e adesão em doenças crônicas.
Ações farmacológicas em pacientes sem desejo gestacional imediato
- Anticoncepcionais hormonais combinados: indicados para regularização menstrual e redução de acne e hirsutismo; escolha da formulação deve considerar risco cardiovascular e perfil metabólico.
- Antiandrogênicos: espironolactona pode ser considerada para hirsutismo refratário, normalmente associada a contracepção eficaz; monitorar função renal e potássio.
- Metformina: avaliada para melhora da sensibilidade à insulina e em pacientes com sobrepeso/obesidade ou risco aumentado de diabetes; contraindicações (p.ex., disfunção renal grave) devem ser observadas.
Para discussão mais ampla de metas glicêmicas e adesão, leia: metas glicêmicas na prática clínica.
Estratégias de fertilidade e manejo durante a gestação
- Indução de ovulação: letrozol é frequentemente primeira escolha para infertilidade associada à SOP, com melhores taxas em alguns estudos comparado ao clomifeno.
- Metformina peri-concepção: pode ser útil em pacientes com resistência à insulina ou obesidade, com decisão individualizada.
- Durante a gravidez: monitorar glicose (risco de diabetes gestacional), pressão arterial e vigilância obstétrica conforme risco materno-fetal.
Abordagem prática na atenção primária: passos acionáveis
Um roteiro pragmático facilita a transição do diagnóstico para o manejo efetivo.
1) Confirmação diagnóstica e fenotipagem
Confirmar pelo menos dois dos três critérios diagnósticos e documentar o fenótipo predominante para guiar condutas terapêuticas e de fertilidade.
2) Avaliação cardiometabólica inicial
- Medir peso, altura, IMC e circunferência da cintura; estabelecer metas realistas.
- Aferir pressão arterial e solicitar glicemia de jejum ± HbA1c; considerar OGTT quando indicado.
- Solicitar perfil lipídico e revisar histórico familiar de diabetes e doença cardiovascular.
3) Planejamento de manejo inicial
- Priorizar objetivos com a paciente: regulação menstrual, controle de hirsutismo/acne, saúde metabólica ou fertilidade.
- Iniciar intervenções de estilo de vida e, se necessário, farmacoterapia baseada no fenótipo e no desejo reprodutivo.
4) Acompanhamento e monitoramento
- Revisões a cada 3–6 meses para avaliar peso, ciclos, sinais androgênicos e adesão.
- Repetir exames metabólicos conforme resposta e necessidade clínica.
Plano de manejo por cenários clínicos
Cenário A: SOP com sobrepeso/obesidade e resistência à insulina
- Priorizar perda de peso (5–10% em 6–12 meses) com dieta e atividade física.
- Considerar metformina conforme indicação e monitorar função renal.
- Oferecer suporte nutricional prático e acompanhamento regular.
Referência prática sobre nutrição e prevenção cardiovascular: nutrição prática e prevenção cardiovascular.
Cenário B: SOP com hiperandrogenismo predominante e ciclos pouco irregulares
- Anticoncepcionais combinados para controle de hirsutismo e acne; discutir riscos e alternativas.
- Adicionar antiandrogênicos (p.ex., espironolactona) se necessário, com monitoramento apropriado.
- Orientar cuidados locais para acne e opções estéticas quando pertinente.
Cenário C: SOP com desejo de gravidez
- Indução de ovulação com letrozol, monitorando resposta ovariana.
- Avaliar uso de metformina na pré-concepção em pacientes com resistência à insulina.
- Planejamento pré-concepcional: otimizar metabolismo, suplementar ácido fólico e ajustar medicamentos teratogênicos.
Quando e como encaminhar
Gerencie a maioria dos casos na atenção primária; encaminhe para endocrinologia, ginecologia ou reprodução assistida quando houver:
- Resposta insuficiente às medidas iniciais ou dúvida diagnóstica sobre hiperandrogenismo.
- Necessidade de tratamento de infertilidade avançado ou monitorização específica para indução de ovulação.
- Comorbidades cardiometabólicas complexas que exigem especialização (cardiologista/endocrinologista).
Para apoiar integrações entre atenção primária e hospitalar, consulte: coordenação primária-hospitalar de alta segura.
Educação terapêutica e adesão
Adesão é crucial. A educação deve incluir explicação clara da SOP, metas realistas de peso e atividade, discussão de efeitos colaterais de medicamentos e planejamento familiar. Suporte para saúde mental melhora adesão e resultados clínicos.
Material de apoio: educação terapêutica e adesão em doenças crônicas.
Ferramentas de monitoramento e qualidade do cuidado
Use planilhas, lembretes de consulta e, quando disponível, telemedicina para acompanhamento entre consultas presenciais. Monitore peso, ciclos, parâmetros metabólicos e efeitos adversos de medicamentos para garantir qualidade do cuidado.
Estratégias práticas de monitoramento podem ser encontradas em: adesão terapêutica e monitorização.
Links internos para aprofundamento
Posts que complementam o manejo da SOP e do risco cardiometabólico na atenção primária:
- Síndrome metabólica na prática clínica
- Nutrição prática e prevenção cardiovascular
- Metas glicêmicas e adesão na prática clínica
- Educação terapêutica e adesão de doenças crônicas
- Coordenação primária-hospitalar e encaminhamentos
Considerações finais práticas
A SOP é uma condição multifacetada cuja gestão na atenção primária exige diagnóstico correto, rastreamento cardiometabólico, intervenções de estilo de vida e terapêuticas dirigidas ao fenótipo e aos objetivos reprodutivos da paciente. A integração entre educação terapêutica, monitoramento contínuo e encaminhamento apropriado permite reduzir riscos a longo prazo (resistência à insulina, síndrome metabólica, diabetes tipo 2) e melhorar desfechos reprodutivos e qualidade de vida. Adapte sempre as recomendações às diretrizes locais, recursos disponíveis e preferências da paciente.
Observação: este documento destina-se à prática clínica na atenção primária e pode requerer adaptação conforme diretrizes locais e características individuais da paciente.