O que é ajuste de dose de medicamentos na insuficiência hepática: guia prático para prescrição segura
Insuficiência hepática e farmacocinética
A insuficiência hepática altera a farmacocinética (absorção, distribuição, metabolismo e excreção) e a farmacodinâmica de muitos fármacos. Aspectos essenciais a avaliar: lipofilicidade, ligação a proteínas plasmáticas, índice de extração hepática e dependência de metabolismo enzimático. Na prática, as mudanças mais frequentes são redução da depuração hepática, aumento da fração livre em pacientes com albumina baixa e alteração do efeito do primeiro passo hepático, o que pode aumentar a biodisponibilidade aparente.
Avaliação clínica e classificação (Child-Pugh e MELD)
A gravidade da disfunção hepática orienta o ajuste. O escore Child-Pugh (A, B, C) é amplamente usado na prática ambulatorial e hospitalar; o MELD complementa em contextos específicos. Em Child-Pugh B/C a necessidade de ajuste é maior e a monitorização deve ser mais frequente. Sempre considere função renal concomitante, presença de ascite, encefalopatia e polifarmácia.
Estratégias de ajuste de dose
- Identifique se o fármaco é amplamente metabolizado pelo fígado, seu clearance e dependência de proteínas plasmáticas.
- Classifique o paciente (Child-Pugh) e aplique recomendações específicas quando disponíveis nas fichas técnicas e guidelines.
- Quando houver incerteza, adote o princípio start low, go slow, especialmente para fármacos de margem terapêutica estreita.
- Aumente intervalos entre doses ou reduza dose total conforme gravidade e resposta clínica.
- Consulte orientações específicas (por exemplo, a orientação sobre farmacogenética em anticoagulantes) para fármacos com variabilidade genética relevante: farmacogenética de dose para anticoagulantes.
Drogas comuns e recomendações por classe
Analgesia e paracetamol
Paracetamol é opção de primeira linha para dor em muitos pacientes com doença hepática, mas exige cautela. Em insuficiência hepática moderada a grave recomenda-se limitar a dose a 2 g/dia; em doença leve, doses até 3 g/dia podem ser consideradas com monitorização e ausência de consumo significativo de álcool. Para orientações práticas sobre analgesia e antibióticos de alto risco, consulte o guia de prescrição segura: prescrição segura ambulatorial.
Antibacterianos e antifúngicos
Antibióticos com extenso metabolismo hepático exigem ajuste de dose ou intervalo; outros, eliminados predominantemente por via renal, podem manter doses usuais se a função renal estiver preservada. Sempre verifique ficha técnica e avalie risco de hepatotoxicidade durante o uso, monitorando enzimas hepáticas conforme necessário.
Anticoagulantes e anticoagulação em hepatopatas
O manejo anticoagulante é complexo: a hepatopatia altera síntese de fatores de coagulação e o metabolismo de anticoagulantes orais. Em alguns casos, escolher anticoagulantes com menor dependência hepática é preferível; quando usar anticoagulantes orais diretos, avalie risco/benefício e, se disponível, incorpore dados de farmacogenética para ajustar a dose. Discussão com hematologia/hepatologia e monitorização laboratorial (INR quando aplicável) são recomendadas.
Estatinas e hipolipemiantes
Em insuficiência hepática leve muitas estatinas podem ser mantidas com monitorização regular de enzimas hepáticas; em insuficiência moderada a grave, considere redução de dose ou alternativas terapêuticas. Evite suspensões abruptas se a indicação clínica for robusta.
Benzodiazepínicos e hipnóticos
Benzodiazepínicos de longa meia-vida (por exemplo, diazepam) acumulam-se em hepatopatas. Prefira agentes com metabolismo conjugativo reduzido (lorazepam, oxazepam, temazepam) ou reduza dose/intervalo e monitore sinais de sedação e encefalopatia. Em pacientes com histórico de encefalopatia, evite benzodiazepínicos quando possível.
Outras classes relevantes
Diuréticos, laxantes, alguns anti-diabetes e certos antifúngicos demandam ajuste individualizado. A revisão semanal da lista de medicamentos do paciente com foco em polifarmácia reduz risco de interações e hepatotoxicidade. Para interações entre medicamentos e nutrientes que impactam a prática clínica, consulte: interações fármacos-nutrientes.
Casos clínicos ilustrativos
Caso 1: Cirrose compensada (Child-Pugh A) com dor moderada — paracetamol até 2 g/dia e reavaliação clínica e laboratorial em 2–4 semanas.
Caso 2: Insuficiência hepática moderada (Child-Pugh B) e fibrilação atrial — considerar anticoagulante com menor metabolismo hepático, envolver hematologia/hepatologia e usar farmacogenética quando disponível.
Caso 3: Esteatose hepática não alcoólica em tratamento com estatina — manter estatina com monitorização periódica de enzimas hepáticas; reavaliar riscos se elevações persistirem.
Monitorização e acompanhamento
- Enzimas hepáticas: ALT, AST, ALP, gGT e bilirrubinas, em intervalos definidos conforme fármaco (ex.: a cada 2–4 semanas no início).
- Coagulação: INR e sinais de comprometimento da função de síntese hepática.
- Avaliação clínica: icterícia, encefalopatia, alterações cognitivas, náuseas, dor abdominal.
- Revisão de medicações: detectar interações novas, uso de suplementos ou álcool.
- Metas terapêuticas: ajustar conforme eficácia (controle de dor, resolução de infecção, metas lipídicas) e segurança.
Resumo prático
O ajuste de dose na insuficiência hepática exige integração entre conhecimento da farmacocinética, classificação da gravidade (Child-Pugh/MELD), revisão da polifarmácia e monitorização laboratorial. Use fichas técnicas e guidelines sempre que disponíveis, aplique start low, go slow para fármacos de índice terapêutico estreito e envolva equipe multidisciplinar (farmacêutico, hepatologista, hematologista) em casos complexos. Com essas medidas é possível equilibrar eficácia terapêutica e segurança, preservando a qualidade de vida do paciente.