Você pratica em geriatria ou atende pacientes idosos com polifarmácia? A deprescrição é uma intervenção de alto impacto para a segurança do paciente, a qualidade de vida e a redução de hospitalizações. Este guia prático oferece uma abordagem estruturada para clínicos que desejam incorporar a deprescrição no consultório, com critérios, ferramentas, estratégias por classes terapêuticas e um plano de implementação com monitorização. Ao longo do texto, encontrará referências a conteúdos já publicados no nosso blog para facilitar o aprofundamento em temas correlatos, além de sugestões de fluxos de trabalho envolvendo a equipe multidisciplinar.
1. Por que deprescrever? Evidência e impacto clínico
A deprescrição não é apenas retirar medicamentos; é otimizar o regime terapêutico para cada paciente, reconhecendo que menos é mais quando se trata de segurança e qualidade de vida. Benefícios potenciais incluem:
- Redução de eventos adversos relacionados a medicamentos (menos quedas, delirium, hipoglicemias, hipotensão ortostática).
- Menor ocorrência de interações medicamentosas clinicamente relevantes em pacientes com multimorbidade.
- Melhora na adesão quando o regime é simplificado e focado em metas prioritárias de cuidado.
- Melhora da função diária e da autonomia, com menor carga de regimes farmacológicos complexos.
Diretrizes internacionais recomendam a revisão medicamentosa periódica em idosos, usando critérios estruturados para identificar prescrições de baixo benefício ou potencialmente prejudiciais. Em nossa prática, suporte tecnológico, comunicação com paciente e família e colaboração com a equipe de farmácia clínica fortalecem a implementação segura da deprescrição. Para aprofundar, consulte conteúdos sobre polifarmácia e quedas que contextualizam a revisão medicamentosa no cuidado domiciliar.
2. Identificação de candidatos: sinais, critérios e escalas
A seleção de candidatos à deprescrição envolve avaliação clínica, metas de cuidado e risco individual. Pontos-chave:
- Revisar os critérios STOPP/START e os Critérios de Beers para identificar medicamentos com relação risco-benefício desfavorável.
- Considerar fragilidade, multimorbidade e comprometimento cognitivo ao aplicar listas de avaliação farmacoterapêutica.
- Detectar sinais de polifarmácia, sobreprescrição e terapias de longo prazo sem reavaliação recente.
- Utilizar escalas de fragilidade e de capacidade de autocuidado, além de incorporar as preferências do paciente na tomada de decisão.
Para enriquecer a prática, veja conteúdos sobre polifarmácia em idosos e sobre integração farmacogenômica na prática clínica.
Critérios que sugerem considerar a deprescrição incluem:
- Medicamentos cujo benefício atual é incerto ou é superado pelo risco em pacientes frágeis.
- Tratamentos mantidos por longos períodos sem reavaliação da necessidade.
- Medicamentos que provocam efeitos adversos relevantes sem benefício compensatório claro.
- Interações farmacológicas que comprometem a funcionalidade ou são difíceis de manejar.
Ferramentas úteis incluem STOPP/START e os Critérios de Beers, que ajudam a estruturar a identificação de candidatos e a priorização das ações. A aplicação prática exige diálogo com paciente e família, definição de objetivos de cuidado, limites da retirada e cronograma de reavaliação.
3. Preparação: avaliação de riscos, prioridades e objetivos de cuidado compartilhados
Antes de iniciar a deprescrição, realize avaliação completa que inclua:
- História medicamentosa detalhada: dosagens, frequências, vias de administração e grau de dependência do paciente/cuidador.
- Identificação dos objetivos de cuidado do paciente (manter funcionalidade, evitar quedas, controlar sintomas, preservar qualidade de vida).
- Avaliação das preferências do paciente, do suporte familiar e dos recursos disponíveis (cuidador, telemedicina, equipe farmacêutica).
- Plano de comunicação claro com paciente e família, reconhecendo possíveis receios quanto à retirada de medicações.
Ferramentas de suporte incluem modelos de entrevista para decisão compartilhada, templates de consentimento e planos de retirada. A checklist de segurança ambulatorial pode orientar a validação de riscos durante a consulta de deprescrição, garantindo que mudanças sejam seguras e rastreáveis.
4. Estratégias práticas de deprescrição por classes
A deprescrição deve ser individualizada. A seguir, estratégias pragmáticas para classes comuns em idosos, com sugestões de ritmo de descontinuação, monitorização e sinais de atenção.
Benzodiazepínicos e sedativos
- Objetivo: reduzir sedação, tontura, quedas e dependência, mantendo sono e controle da ansiedade adequados.
- Estratégia: reduzir a dose gradualmente (por exemplo, reduzir pela metade a cada 2–4 semanas ou 10–25% a cada 1–2 semanas conforme tolerância), monitorando sintomas de abstinência e insônia; considerar terapias não farmacológicas (higiene do sono, CBT-I).
- Riscos: rebote de ansiedade, insônia, agitação. Sinais de alerta incluem piora da confusão, aumento das quedas ou sonolência excessiva.
- Ferramentas: plano de retirada com marcos, apoio da farmácia clínica para orientar o tapering seguro.
Antipsicóticos, antidepressivos e demais psicotrópicos
- Objetivo: reduzir uso contínuo quando possivelmente desnecessário (ex.: pacientes com demência) sem piorar sintomas críticos, e otimizar manejo do humor e da ansiedade.
- Estratégia: discutir descontinuação gradual com paciente, familiares e equipe; monitorar comportamento, sono e estabilidade emocional.
- Riscos: recidiva de sintomas ou piora do sono; sinais de alerta incluem aumento de agitação, agressividade ou declínio cognitivo.
AINEs e outros analgésicos
- Objetivo: reduzir riscos de gastrite, úlcera, sangramento e insuficiência renal, mantendo alívio adequado da dor.
- Estratégia: reavaliar necessidade contínua; quando indicado, reduzir dose ou trocar por analgésicos com perfil de segurança melhor em idosos; incorporar abordagens não farmacológicas (fisioterapia, exercícios, terapias físicas).
- Riscos: sangramento gastrointestinal, lesão renal aguda, interações com anti-hipertensivos.
Anti-hipertensivos e hipoglicemiantes: equilíbrio hemodinâmico
- Objetivo: evitar hipotensão sintomática e hipoglicemias graves, preservando controle pressórico e glicêmico compatível com metas realistas para cada paciente.
- Estratégia: reavaliar regime com metas individualizadas de PA e glicemia; ajustar doses e monitorar pressão arterial em domicílio quando apropriado.
- Riscos: quedas, descompensação de doenças cardiovasculares ou diabetes; sinais de alerta incluem tontura ao levantar, confusão ou episódios de hipoglicemia.
Inibidores de bomba de prótons e antiácidos de uso crônico
- Objetivo: reduzir uso desnecessário de IBPs quando não indicado, sem provocar refluxo grave.
- Estratégia: reavaliar indicação periodicamente; tentar reduzir ou descontinuar seguindo plano de retirada e medidas não farmacológicas (ajustes dietéticos, elevação da cabeceira).
- Riscos: recidiva de sintomas, alterações na absorção de nutrientes; monitorar sinais gastrointestinais e alterações laboratoriais quando indicado.
5. Ferramentas, recursos e fluxo de trabalho
Para tornar a deprescrição prática e segura, use ferramentas estruturadas:
- Checklist de avaliação medicamentosa com foco em retirada e monitorização.
- Planos de retirada por droga/classe com marcos temporais para reavaliação clínica.
- Planos de comunicação com paciente e família, incluindo consentimento compartilhado e expectativas claras.
- Integração com a farmácia clínica e equipe de enfermagem para apoiar monitorização da retirada e resposta a sinais de alerta.
Recursos do nosso blog que podem apoiar a prática:
- Polifarmácia em idosos e prevenção de quedas domiciliar: polifarmácia em idosos.
- Integração com a farmácia clínica: integração com a farmácia clínica.
- Farmacogenômica na prática clínica: integração farmacogenômica.
- Vitamina D, quedas e saúde óssea em idosos: vitamina D e quedas.
- Boas práticas de uso de antibióticos: uso de antibióticos.
Use a checklist de segurança ambulatorial durante a consulta de deprescrição para garantir que todos os passos críticos sejam cumpridos.
6. Comunicação com o paciente e a família: como conversar e documentar
Comunicação eficaz é fundamental. Recomendações práticas:
- Explique o porquê: apresente claramente os benefícios esperados da deprescrição para segurança e qualidade de vida.
- Defina metas de cuidado compartilhadas, com plano de retirada gradual e monitorização de sinais de retirada ou piora clínica.
- Use linguagem acessível, evitando termos técnicos em excesso; ofereça suporte para dúvidas de paciente e cuidador.
- Documente: decisão de deprescrição, plano de retirada, metas de monitorização e datas de reavaliação.
Recursos digitais, como guias de conversa sobre deprescrição, ajudam a manter consistência entre consultas presenciais e telemedicina.
7. Monitorização e plano de seguimento
Monitorização após iniciar a deprescrição é essencial para detectar efeitos de retirada, recaídas ou descompensação de doenças subjacentes. Recomendações:
- Estabeleça marcos de reavaliação: 2–4 semanas após ajuste, com avaliação de sono, ansiedade, dor, função física e qualidade de vida.
- Defina alertas para quedas, confusão ou piora da mobilidade; planeje intervenções caso ocorram eventos adversos.
- Oriente pacientes e cuidadores sobre sinais que exigem atendimento imediato.
- Realize revisões de medicação em ciclos regulares (por exemplo, a cada 3–6 meses) para garantir que a deprescrição permaneça adequada.
Monitorização pode ser feita na atenção primária, com apoio de telemedicina para pacientes com mobilidade reduzida.
8. Casos clínicos ilustrativos e checklist prático
Três casos curtos que ilustram a aplicação das estratégias descritas, com decisões de deprescrição, cronograma e sinais de monitorização:
Caso 1: excesso de benzodiazepínicos em idosa de 78 anos
Paciente com ansiedade e insônia em uso de lorazepam 0,5 mg à noite e clonazepam 0,5 mg duas vezes ao dia; apresenta quedas recorrentes e sonolência diurna. Meta: reduzir risco de quedas mantendo sono razoável.
- Ação: iniciar retirada gradual do clonazepam, reduzindo 25% a cada 2–4 semanas, com monitorização de insônia, ansiedade e segurança funcional; introduzir medidas não farmacológicas.
- Monitorização: check-ins quinzenais por 2 meses, avaliando sono, humor, quedas e função diária.
- Equipe: envolver farmácia clínica para suporte no tapering e avaliação de substituições quando necessário.
Caso 2: descontinuação gradual de PPI em idoso com desconforto abdominal leve
Paciente de 82 anos em uso contínuo de omeprazol há 5 anos. Questiona‑se benefício atual versus riscos do uso prolongado.
- Ação: reduzir a dose do PPI em 50% a cada 4–6 semanas, com medidas não farmacológicas para refluxo leve (ajustes dietéticos, elevação da cabeceira).
- Monitorização: avaliar dor abdominal, refluxo e desconforto; reavaliar em 6–8 semanas.
- Riscos: retorno dos sintomas e possíveis alterações na absorção de nutrientes; monitorar B12 e cálcio conforme necessidade clínica.
Caso 3: reengenharia de regime em paciente com polifarmácia e doença cardíaca estável
Paciente de 75 anos com hipertensão, hipercolesterolemia e osteoartrose, usando múltiplos anti-hipertensivos, estatina, ácido acetilsalicílico 100 mg e IBP; relata quedas ocasionais e fadiga leve.
- Ação: revisar cada medicamento quanto à relevância atual; priorizar metas (manter PA estável e reduzir quedas) e ajustar tratamentos conforme evidência e preferência do paciente.
- Plano: considerar retirada de PPI, ajuste de anti-hipertensivos conforme tolerância e discussão sobre continuidade da estatina dependendo do benefício previsto; envolver farmacêutico para orientação.
- Monitorização: avaliações mensais por 3 meses com reavaliação de PA, função renal, lipídios, dor e mobilidade.
Esses casos demonstram a importância do fluxo multidisciplinar (médico, farmacêutico, enfermeiro e cuidador) para manter segurança e funcionalidade. Veja também integração com a farmácia clínica e farmacogenômica na prática clínica.
9. Ações práticas para implementação no consultório
Para iniciar a deprescrição de forma segura e sustentável, adote estas etapas:
- Treine a equipe para conduzir revisões de medicação com foco em retirada gradual e monitorização de sinais de abstinência ou recidiva.
- Implemente um protocolo simples de deprescrição com passos definidos, marcos temporais e critérios de interrupção baseados em evidência.
- Use templates de plano de retirada, consentimento compartilhado e instrumentos de monitorização.
- Integre a farmacêutica clínica e a enfermagem na rotina de revisão medicamentosa, garantindo comunicação e seguimento adequados.
- Documente cada decisão: data, fármaco, dose, ritmo de redução, justificativa clínica e objetivos de cuidado para facilitar reavaliações.
Resultados esperados: melhor tolerabilidade aos medicamentos, redução de quedas, maior adesão ao regime terapêutico e melhor alinhamento com as metas de saúde do paciente.
Próximos passos e adaptação para público
A deprescrição em idosos exige equilíbrio entre benefício e risco, centrada no paciente e em sua rede de apoio. Com fluxo estruturado, critérios validados, comunicação clara e monitorização diligente, é possível reduzir a carga medicamentosa sem comprometer o controle das condições crônicas. Posso adaptar este guia para uma versão voltada a pacientes, com linguagem mais acessível, ou mantê-lo exclusivamente para profissionais de saúde. Qual prefere?