Hemocromatose hereditária: sinais de alerta, interpretação de ferritina e saturação de transferrina, teste HFE e manejo com flebotomia
Texto dirigido a profissionais de saúde, com linguagem direta e aplicável na prática clínica. Aborda identificação de sinais de alerta, interpretação laboratorial (ferritina e saturação de transferrina), papel do teste HFE e conduta com flebotomia para controle do sobrecarregamento de ferro e prevenção de complicações como cirrose, diabetes mellitus tipo 2 e cardiomiopatia.
Hemocromatose hereditária: contexto clínico e epidemiologia
A hemocromatose hereditária é um distúrbio de absorção do ferro de herança autossômica recessiva, associado principalmente a mutações do gene HFE (C282Y e H63D). O acúmulo progressivo de ferro em fígado, pâncreas, coração e articulações pode levar a cirrose, diabetes e insuficiência cardíaca se não identificado e tratado precocemente. A apresentação varia: muitos permanecem assintomáticos por décadas; outros desenvolvem manifestações sistêmicas que exigem investigação ativa.
Genética prática: HFE, C282Y e H63D
A presença de C282Y em homozygose confere maior risco fenotípico, embora a penetrância seja variável. Heterozigotos e portadores de combinações com H63D podem apresentar sobrecarregamento de ferro em contexto de fatores ambientais ou comorbidades. O aconselhamento e o rastreamento familiar são essenciais; para práticas de rastreamento e aconselhamento genético na atenção primária, ver referência prática sobre rastreio genético na atenção primária.
Interpretação de ferritina e saturação de transferrina
Ferritina
A ferritina reflete as reservas de ferro, mas é um reagente de fase aguda; valores elevados podem decorrer de inflamação, doença hepática ou neoplasia. Em homens, níveis persistentemente >300 ng/mL e, em mulheres, >200 ng/mL, aumentam a suspeita de sobrecarregamento de ferro quando acompanhados de saturação de transferrina elevada. Sempre interpretar ferritina no contexto clínico (idade, sexo, inflamação, álcool, comorbidades).
Saturação de transferrina
A saturação de transferrina (SF) é um marcador mais específico de absorção aumentada de ferro; valores iniciais acima de 45% sugerem excesso de absorção intestinal. SF persistentemente elevada com ferritina moderada a alta justifica investigação genética e rastreamento familiar. Em episódios inflamatórios agudos, repetir os exames após resolução clínica quando houver dúvida.
Teste HFE: indicação e implicações clínicas
O teste molecular para variantes do gene HFE (C282Y/H63D) é indicado quando há suspeita laboratorial (SF elevada e ferritina inexplicada) ou história familiar positiva. A confirmação genética orienta o rastreamento de familiares de primeiro grau e auxilia no planejamento terapêutico. Para contexto sobre avanços em genética clínica que podem complementar o manejo e o aconselhamento, consulte material sobre avanç os em genética clínica.
Manejo com flebotomia: objetivos e protocolo
Fase de redução da carga de ferro
A flebotomia terapêutica é a intervenção de escolha para reduzir a carga de ferro. A frequência inicial costuma ser semanal ou quinzenal até atingir ferritina alvo (p. ex., 50–100 ng/mL) e saturação de transferrina normalizada (<45%). Monitorar hemoglobina, sinais de hipovolemia e parâmetros hepáticos durante a fase ativa.
Fase de manutenção e seguimento
Após atingir os objetivos, o esquema passa para manutenção — tipicamente flebotomias a cada 2–4 meses, ajustadas conforme ferritina sérica e SF. A avaliação anual deve incluir função hepática, glicemia/HbA1c, perfil lipídico e, se indicado, avaliação cardiológica e de avaliação de fibrose hepática. Em pacientes com anemia ou comorbidades, individualizar o plano terapêutico e considerar apoio de hematologia/hepatologia.
Abordagem multidisciplinar e manejo de comorbidades
O manejo ideal envolve clínico geral, hepatologista, endocrinologista e cardiologista. Aspectos práticos incluem vigilância de fibrose hepática e risco de cirrose, controle de diabetes secundário ao depósito de ferro, avaliação da função cardíaca em suspeita de cardiomiopatia por depósito de ferro e atenção às manifestações articulares e gonadais. Em mulheres, considerar o efeito da menstruação e da menopausa na interpretação dos níveis de ferritina.
Atendimento na atenção primária: quando suspeitar e como encaminhar
- Pensar em hemocromatose em pacientes com ferritina persistentemente elevada e SF >45%, especialmente se houver história familiar de doença hepática, diabetes inexplicado ou artralgia refratária.
- Solicitar inicialmente ferritina e saturação de transferrina; confirmar resultados após excluir causas inflamatórias quando houver suspeita.
- Solicitar teste HFE em pacientes com SF persistente elevada e ferritina elevada sem etiologia explicável; encaminhar para genética ou hepatologia conforme resultado e contexto clínico.
- Planejar as flebotomias em parceria com hematologia/hepatologia e ajustar frequência segundo resposta e comorbidades.
Ações práticas para o clínico
Resumo operacional: teste HFE, ferritina, SF e flebotomia
- Incluir ferritina e saturação de transferrina na avaliação de pacientes com doença hepática inexplicada, diabetes de início atípico ou artralgias persistentes.
- Se SF >45% e ferritina inexplicada, considerar teste HFE e rastrear familiares de primeiro grau.
- Iniciar flebotomia terapêutica conforme orientação especializada até atingir ferritina alvo (50–100 ng/mL) e monitorar SF; manter flebotomias de manutenção conforme necessidade.
- Monitorar complicações (cirrose, diabetes, cardiomiopatia) e conduzir acompanhamento multidisciplinar.
- Oferecer aconselhamento genético a pacientes e familiares, explicando penetrância variável e implicações do diagnóstico genético.
A identificação precoce do sobrecarregamento de ferro e o tratamento oportuno com flebotomia reduzem morbidade e melhoram desfechos. A integração entre atenção primária, especialidades e aconselhamento genético é fundamental para um acompanhamento eficaz e seguro.