Os dispositivos de estimulação cardíaca, como o marcapasso e a terapia de ressíncronização cardíaca (TRC), são ferramentas essenciais no manejo de bradiarritmias e na insuficiência cardíaca com dissincronia. Este texto apresenta orientações práticas sobre indicação, seleção de pacientes, implantação, monitorização e manejo de complicações, com foco em aplicação no consultório e na rotina de equipes cardiológicas.
Marcapasso e terapia de ressíncronização cardíaca
O marcapasso é um gerador implantável que envia impulsos elétricos para manter frequência cardíaca adequada em pacientes com bradicardia sintomática ou pausas. A terapia de ressíncronização cardíaca (TRC) estimula simultaneamente ventrículos ou combina estimulação atrioventricular para melhorar a coordenação contrátil em pacientes com insuficiência cardíaca e dissincronização interventricular.
Arquitetura do sistema
Um sistema típico inclui um gerador subcutâneo conectado a eletrodos (leads) posicionados nas câmaras cardíacas. Sistemas modernos podem ser compatíveis com monitorização remota e, quando indicado, com ressonância magnética (MRI conditional). A opção entre marcapasso unicameral, bicameral, TRC biventricular ou dispositivos sem eletrodos (leadless) depende da anatomia cardíaca, do padrão eletrocardiográfico, da função ventricular e das comorbidades do paciente.
Indicações e seleção de pacientes
A decisão de implantar um marcapasso ou TRC deve basear-se em avaliação clínica, eletrocardiograma, ecocardiograma e otimização da terapia médica. A seleção criteriosa maximiza benefícios e reduz riscos.
Indicações para marcapasso
- Bradiarritmias sintomáticas: síncope, pré‑síncope ou intolerância hemodinâmica atribuíveis a bradicardia clinicamente documentada.
- Bloqueio atrioventricular de 2.º grau tipo Mobitz II e bloqueio AV de 3.º grau, independentemente dos sintomas em muitas situações.
- Doença do nó sinusal sintomática com comprometimento da qualidade de vida ou queda de desempenho funcional.
Indicações para terapia de ressíncronização cardíaca (TRC)
- Insuficiência cardíaca sintomática (NYHA II–IV) apesar de terapia médica otimizada, com fração de ejeção do ventrículo esquerdo reduzida (FE ≤ 35%) e evidência de dissincronização elétrica (QRS alargado, especialmente bloqueio de ramo esquerdo com duração de QRS ≥ 130–150 ms).
- Pacientes com cardiomiopatia dilatada e previsão de benefício hemodinâmico por sincronização ventricular.
- A indicação é mais consistente em ritmo sinusal; em fibrilação atrial, a avaliação individualizada e estratégias como ablação de via atrioventricular podem ser necessárias para otimizar resposta à TRC.
Contraindicações e considerações especiais
- Infecção ativa no local do implante ou bacteremia não controlada.
- Anatomia ou lesões vasculares que impeçam posicionamento seguro dos eletrodos.
- Expectativa de vida muito limitada sem benefício clínico relevante do implante.
- Limitações sociais ou de acesso que prejudiquem o seguimento e a monitorização remota.
Avaliação pré‑operatória
A avaliação deve ser multidisciplinar e incluir: comorbidades (insuficiência renal, doença pulmonar), uso de anticoagulantes, risco de infecção, exames de imagem e discussão com o paciente sobre expectativas, restrições temporárias de atividades e plano de acompanhamento. Documente a indicação, alternativas terapêuticas e consentimento informado.
Monitorização e seguimento
A monitorização inclui revisão clínica periódica e, idealmente, telemonitorização. A telemonitorização permite detectar alterações de impedância, queda de bateria, episódios arritmicos e falhas de eletrodo, potencialmente antecipando intervenções.
Programação inicial e ajustes
- Ajuste de parâmetros: sensibilidade, modos de estimulação, intervalos atrioventriculares e thresholds de captura (limiares) para garantir eficácia e prolongar vida útil da bateria.
- Configuração de algoritmos de economia de bateria e de detecção de arritmias conforme necessidade clínica.
Telemonitorização
Estabeleça protocolo de envio e revisão de dados remotos: no primeiro ano, janelas de revisão mais próximas (por exemplo, trimestrais) são recomendadas, com aumento do intervalo conforme estabilidade. Defina critérios de alarme e fluxo de ação para eventos significativos.
Complicações precoces e tardias
- Complicações precoces: hematoma de bolso, pneumotórax, lesão vascular, infecção do sítio de implante.
- Complicações tardias: falha de eletrodo (lead), migração, fratura do cabo, infecção endovascular/mediastinal, exaustão da bateria e disfunção do gerador.
Gestão de complicações e segurança do paciente
O reconhecimento precoce das complicações é essencial. Em infecção confirmada do gerador ou dos eletrodos, a remoção completa do sistema costuma ser necessária, seguida de antibioticoterapia dirigida e reimplante quando seguro. Falhas de eletrodo podem exigir revisão cirúrgica ou substituição do gerador/eletrodos. Protocolos locais devem prever acesso rápido a intervenção e orientar sobre sinais de alerta que o paciente deve reconhecer.
Reabilitação, estilo de vida e educação do paciente
Após o implante, a maior parte dos pacientes retoma atividades normais e exercícios moderados com orientação. Recomendações práticas:
- Evitar esforços intensos com o membro superior do lado do implante nas primeiras semanas para reduzir risco de deslocamento do eletrodo.
- Orientar sobre dispositivos de potencial interferência eletromagnética e situações de risco (proximalidade a equipamentos industriais, exposição a ímãs fortes).
- Explicar cuidados com o local do implante, sinais de infecção, e importância do seguimento e da monitorização remota.
Casos clínicos ilustrativos
- Caso 1: Paciente com síncope recorrente e bloqueio AV completo; indicação de marcapasso bicameral. Seguimento remoto documentou estabilidade eletrodinâmica e redução de eventos de síncope em 24 meses.
- Caso 2: Paciente com insuficiência cardíaca sintomática, FE 28% e bloqueio de ramo esquerdo (QRS 160 ms). TRC biventricular associada à redução de internações por insuficiência cardíaca e ganho funcional após otimização do tempo AV e do intervalo entre ventrículos via programação não invasiva.
Avanços e tendências
- Marcapassos sem eletrodos (leadless) que reduzem complicações relacionadas a cabos e bolsos subcutâneos.
- Dispositivos compatíveis com ressonância magnética (MRI conditional), ampliando opções diagnósticas seguras.
- Monitorização avançada com algoritmos e ferramentas de inteligência artificial para detecção precoce de falhas e otimização automática de parâmetros.
- Algoritmos de otimização hemodinâmica que ajustam automaticamente a sincronização entre câmaras com base na resposta do paciente.
Aplicação prática no consultório
- Padronize a avaliação pré‑implantação com checklist que inclua indicação clínica, exames relevantes, uso de anticoagulação e plano de monitorização remota.
- Implemente protocolo de follow‑up remoto com metas de frequência de revisão e ações definidas para alertas.
- Eduque paciente e família sobre sinais de alarme, cuidados locais e importância da adesão ao acompanhamento.
- Integre equipe multiprofissional (cardiologia, enfermagem, engenharia clínica, reabilitação) para otimizar resultados.
Mensagem final
Marcapassos e terapia de ressíncronização cardíaca são intervenções comprovadas para melhorar sintomas, qualidade de vida e, em muitos casos, prognóstico. O sucesso depende de seleção criteriosa de pacientes, programação individualizada, monitorização ativa — incluindo monitorização remota — e educação contínua do paciente. Protocolos locais bem definidos e integração de equipe são fundamentais para reduzir complicações e maximizar benefícios clínicos.
Resumo prático
- Indicação: avalie marcapasso em bradiarritmias sintomáticas; considere TRC em insuficiência cardíaca com FE ≤ 35% e dissincronização elétrica após otimização da terapia médica.
- Monitorização ativa: utilize monitorização remota para detecção precoce de falhas e para ajustes sem necessidade de visitas frequentes.
- Gestão de complicações: esteja atento a infecção, falha de eletrodo e disfunção do gerador; tenha protocolo de resposta rápida.
- Educação do paciente: capacite para reconhecer sinais de alerta e para manter acompanhamento e adesão terapêutica.