Distúrbios menstruais na atenção primária: triagem
Profissional da atenção primária: este guia prático orienta a triagem, a solicitação de exames essenciais e o manejo inicial de pacientes com sangramento menstrual anormal ou dor pélvica, priorizando segurança, eficácia e adesão ao tratamento.
Sangramento uterino anormal (SUA): definição e PALM-COEIN
Sangramento uterino anormal (SUA) inclui alterações no volume, duração, frequência e padrão do sangramento que fogem ao esperado para a idade e ao contexto reprodutivo. Na atenção primária, utilizar uma abordagem padronizada facilita identificar causas comuns, sinais de alarme e decidir entre manejo conservador, tratamento inicial ou encaminhamento.
O sistema PALM-COEIN organiza causas em estruturais (PALM) e não estruturais (COEIN):
- P – polipos endometriais, miomas (leiomiomas), adenomiose;
- A – alterações estruturais diversas (ex.: miomas submucosos que causam sangramento);
- L – lesões malignas ou hiperplasia endometrial;
- M – outras causas uterinas estruturais;
- C O – causas não estruturais, como disfunção ovulatória/anovulação;
- E – distúrbios endócrinos (p.ex., disfunção tireoidiana, hiperprolactinemia, síndrome dos ovários policísticos – SOP);
- I – causas infecciosas e inflamatórias (p.ex., doença inflamatória pélvica quando clinicamente indicada);
- N – outros fatores (p.ex., uso de anticoagulantes, sangramento na pós‑menopausa, gravidez).
Triagem na atenção primária: identificar sinais de alerta
A triagem começa por anamnese dirigida e exame físico focalizado. Priorize a segurança do paciente: descarte gravidez, avalie hemodinâmica e identifique sinais de alarme para investigação mais agressiva.
Anamnese dirigida
- Características do sangramento: volume, duração, presença de coágulos, intervalo entre ciclos e padrão (menorragia, metrorragia, sangramento intermenstrual);
- Sintomas associados: dor pélvica, sensação de massa, fadiga, síncope ou tontura que sugiram anemia;
- História obstétrica/ginecológica, uso de anticoncepcionais ou terapia hormonal, uso de anticoagulantes, antecedentes de coagulopatia;
- Comorbidades relevantes: hipertensão, diabetes, obesidade, distúrbios tireoidianos, uso de medicações que interfiram na coagulação.
Sinais de alerta
- Sangramento pós‑menopausa, sangramento intermenstrual persistente em perimenopausa ou sangramento com sinais de choque ou anemia grave;
- Sintomas hemodinâmicos (hipotensão, taquicardia), hemorragia que não responde a medidas iniciais;
- Suspeita de massa pélvica ou dor intensa que sugira patologia aguda ou neoplásica.
Exame físico objetivo
- Avaliação hemodinâmica (sinais vitais, perfusão);
- Exame abdominal e especular ou toque vaginal quando indicado e confortável para a paciente; realizar exame ginecológico conforme competência do profissional e a suspeita clínica;
- Pesquisar sinais de coagulopatia (equimoses, sangramentos mucocutâneos) e realizar palpação de massas abdominais quando necessário.
Exames essenciais no primeiro contato
Escolha exames conforme história, idade e presença de sinais de alarme. Exames frequentemente indicados na atenção primária:
- β‑hCG (teste de gravidez): obrigatório em qualquer mulher em idade reprodutiva com sangramento ativo ou dúvida clínica;
- Hemograma completo: avalia anemia, plaquetas e gravidade do sangramento;
- Ferritina sérica e ferro sérico
- TSH e prolactina quando houver suspeita de distúrbio endócrino (ex.: SOP, disfunção tireoidiana);
- Função renal e glicemia como rastreio de comorbidades que influenciam terapias hormonais;
- Coagulograma se história de sangramentos excessivos, uso de anticoagulantes ou suspeita de distúrbio de coagulação;
- Perfil hormonal adicional (FSH, LH, testosterona) quando indicado para investigação de anovulação ou hiperandrogenismo;
- Ultrassonografia transvaginal para investigar miomas, pólipos e espessamento endometrial em casos persistentes ou em pós‑menopausa;
- Biópsia endometrial ou histeroscopia apenas quando houver indicação por suspeita de hiperplasia ou neoplasia (pós‑menopausa, risco elevado);
- Exames para infecção só se houver quadro clínico compatível.
Evite exames desnecessários: em adolescentes e em mulheres jovens com padrão menstrual regular e sem sinais de alarme, priorize medidas conservadoras e reavalie em 6–12 semanas.
Manejo prático na atenção primária
O manejo deve considerar desejo reprodutivo, gravidade do sangramento, anemia e comorbidades. Combine alívio sintomático imediato com estratégias para controle de recorrência.
Controle sintomático agudo
- AINEs (ibuprofeno, naproxeno) para dor e redução do fluxo quando não contraindicados;
- Ácido tranexâmico em curta duração para sangramento intenso, avaliando risco tromboembólico;
- Repor ferro oral em presença de anemia ferropriva, monitorando ferritina;
- Suporte hemodinâmico e transfusão em casos de perda sanguínea significativa conforme protocolos locais.
Opções hormonais e dispositivos
- Contraceptivos hormonais combinados (pílula) para regularizar ciclos em pacientes sem contraindicações;
- Progestagênios isolados quando o estrogênio for contraindicado;
- LNG‑IUS (dispositivo intrauterino liberador de levonorgestrel) é opção eficaz para redução do fluxo em muitos casos e preservação da fertilidade;
- Considerar encaminhamento para intervenção ginecológica (miomectomia, histeroscopia, ablação endometrial) quando indicado pela resposta ao tratamento ou por características anatômicas.
Tratamento de condições específicas
- Miomas — manejo conservador com controle sintomático; avaliar tamanho, localização e desejo reprodutivo para decidir por cirurgia;
- Adenomiose — analgesia, considerações para LNG‑IUS ou cirurgia em casos refratários;
- Hiperplasia endometrial sem atipia — terapêutica hormonal ou observação guiada por idade e fatores de risco;
- SOP — abordagem metabólica (controle de peso, atividade física), terapia hormonal para regularização e manejo da infertilidade conforme necessidade.
Abordagem por faixa etária
Adolescentes
Priorizar segurança, redução do impacto psicossocial e opções hormonais com boa aceitabilidade. Ensinar sinais de alarme e discutir planejamento reprodutivo futuro.
Mulheres em idade reprodutiva com desejo de fertilidade
Preferir intervenções menos invasivas (LNG‑IUS, anticoncepcionais combinados) e investigar causas que possam afetar a fertilidade, como miomas submucosos ou SOP.
Perimenopausa e pós‑menopausa
Nestes grupos, investigar com maior rigor (ultrassonografia transvaginal, biópsia endometrial) para excluir hiperplasia ou neoplasia; balancear riscos tromboembólicos ao indicar terapias hormonais.
Quando encaminhar e como acompanhar
- Encaminhar para ginecologia se sangramento refratário, suspeita de lesão maligna ou necessidade de procedimentos diagnósticos/terapêuticos (histeroscopia, biópsia);
- Encaminhamento urgente em sangramento agudo com hipotensão, queda expressiva da hemoglobina ou anemia sintomática;
- Agendar reavaliação para monitorar eficácia do tratamento, tolerabilidade e níveis de ferritina quando indicado; estabelecer metas de melhora sintomática e qualidade de vida.
Considerações especiais e segurança
- Descarte sempre gravidez em mulheres em idade fértil com sangramento ativo antes de iniciar terapias potencialmente teratogênicas ou inadequadas;
- Sinais de alerta para câncer endometrial: sangramento pós‑menopausa, sangramento em >45–50 anos com anovulação prolongada — indicar ultrassonografia transvaginal e considerar biopsia endometrial;
- Uso de anticoagulantes e distúrbios de coagulação exigem avaliação cuidadosa e, frequentemente, consulta com hematologia;
- Atenção a interações medicamentosas em pacientes com polifarmácia e comorbidades como hipertensão e diabetes.
Evidência e aplicação prática de diretrizes
Diretrizes atuais reforçam avaliação clínica criteriosa, triagem para condições graves, uso racional de exames complementares e terapias que promovam alívio com boa tolerabilidade. A decisão deve ser compartilhada com a paciente, com material educativo que melhore a adesão e facilite o seguimento.
Recursos de apoio à educação do paciente podem ser incorporados à consulta, por exemplo, materiais sobre educação terapêutica e orientações integradas de promoção da saúde cardiovascular quando houver comorbidades metabólicas.
Orientações práticas finais
- Iniciar por β‑hCG e hemograma em qualquer episódio de sangramento em idade fértil;
- Tratar sintomas agudos com AINEs e ácido tranexâmico quando indicado; repor ferro se houver anemia documentada e monitorar ferritina;
- Considerar opções hormonais (pílulas combinadas, progestagênios isolados) ou LNG‑IUS conforme perfil reprodutivo e risco trombótico;
- Solicitar ultrassonografia transvaginal e avaliar necessidade de biópsia em sangramento pós‑menopausa, suspeita de hiperplasia ou em casos persistentes;
- Estabelecer critérios claros de encaminhamento e plano de acompanhamento com metas de melhora e materiais de educação para reforçar adesão.
Este artigo é dirigido a profissionais de saúde na atenção primária e visa apoiar decisões clínicas com base em evidência e prática clínica habitual. Em casos complexos, consulte diretrizes locais e especialistas.