Triagem de depressão na atenção primária: guia prático para clínicos

Triagem de depressão na atenção primária: guia prático para clínicos

A depressão é uma das principais causas de queixas frequentes no consultório de atenção primária, com impacto significativo na qualidade de vida, adesão ao tratamento e no curso de doenças crônicas. Estima-se que mais de 264 milhões de pessoas no mundo convivam com depressão. Para o médico de atenção primária, o desafio é identificar sintomas de forma eficiente e estruturar um caminho de cuidado acessível, seguro e eficaz. Este guia prático descreve como melhorar a triagem, a avaliação e o manejo inicial da depressão no consultório, com foco em instrumentos validados, tomada de decisão compartilhada e integração com a rede de cuidados.

Por que a depressão merece atenção na prática clínica

A depressão não é apenas um sofrimento emocional: está associada a maior morbidade, pior adesão ao tratamento de doenças crônicas, intensificação da dor e maior uso de serviços de saúde. A identificação precoce na atenção primária pode reduzir a gravidade do episódio, acelerar o acesso a psicoterapia ou farmacoterapia e diminuir o risco de suicídio. Em pacientes com hipertensão, diabetes, obesidade, dor crônica e outras comorbidades, a depressão é um marcador de pior prognóstico e deve ser rastreada sistematicamente.

Entendendo a depressão na prática clínica

Definição e critérios básicos

A depressão clínica envolve um período prolongado de humor deprimido ou perda de interesse/prazer, acompanhado por alterações no sono, apetite, energia, concentração e pensamentos de inutilidade. Clinicamente, o diagnóstico costuma considerar sintomas persistentes por pelo menos duas semanas com impacto funcional. Na atenção primária, é útil identificar pacientes com risco elevado que precisam de avaliação e intervenção imediatas.

Ferramentas de triagem validadas para uso diário

Os instrumentos mais utilizados em consultório são o PHQ-2 (duas perguntas) como rastreio inicial e o PHQ-9 para avaliação da gravidade. O PHQ-9 tem nove itens, pontuação de 0 a 27: 0–4 ausência de sintomas, 5–9 sintomas leves, 10–14 moderado, 15–19 moderadamente grave e 20–27 grave. Essas ferramentas são rápidas, podem ser preenchidas na sala de espera ou digitalmente e são validadas para diferentes faixas etárias e contextos clínicos.

Quando realizar a triagem no fluxo de consulta

Considere triagem em todas as consultas de rotina de adultos, especialmente em pacientes com:

  • Doenças crônicas (hipertensão, diabetes, dor crônica)
  • Uso de substâncias (álcool, outras drogas)
  • Sintomas somáticos inexplicados (fadiga, dor difusa, distúrbios do sono)
  • Mudanças de humor ou perda de prazer por mais de duas semanas

Avaliação abrangente: o que o médico precisa considerar

Avaliação de risco de suicídio

A avaliação do risco de suicídio deve ser parte rotina quando houver suspeita de depressão. Perguntas diretas e empáticas ajudam a identificar ideação, planos, acesso a meios letais e histórico de tentativas. Em casos de risco elevado, são necessárias medidas imediatas: acompanhamento rápido, encaminhamento para serviços de emergência e elaboração de um plano de segurança com o paciente e a família.

Avaliação de comorbidades médicas e função somática

A depressão frequentemente coexiste com condições que agravam os sintomas ou complicam o tratamento. Verifique anemia, alterações da tireoide, deficiências nutricionais, uso de medicamentos que possam causar sintomas depressivos e abuso de álcool ou outras substâncias. Exames laboratoriais simples podem ajudar a diferenciar causas secundárias e orientar o manejo.

Tratamento inicial na atenção primária

Abordagem psicoterápica baseada em evidências

A psicoterapia é efetiva, especialmente quando iniciada precocemente. Terapia cognitivo-comportamental (TCC) e terapia interpessoal (TIP) têm respaldo robusto. Em contextos com acesso limitado, intervenções breves focadas, treinamentos de habilidades de enfrentamento e orientações de autocuidado podem ser úteis. A combinação de psicoterapia e farmacoterapia costuma apresentar melhores resultados quando indicada.

Farmacoterapia: quando iniciar e como monitorar

Os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) são frequentemente a primeira escolha por eficácia, segurança e tolerabilidade (ex.: sertralina, citalopram, escitalopram, fluoxetina). Em pacientes com dor ou ansiedade associada, ISRS ou inibidores de recaptação de serotonina-norepinefrina (ISRS/SNRI) podem ser considerados. A resposta clínica costuma aparecer entre 4 e 6 semanas; ajuste posológico pode ser necessário. Inicie com doses baixas, monitore efeitos adversos e planeje desmame gradual quando houver troca ou suspensão. Pacientes com risco de suicídio exigem monitorização mais frequente e, em geral, envolvimento da psiquiatria.

Plano de monitoramento e encaminhamentos

Estabeleça reavaliações regulares (a cada 2–4 semanas no início) para ajustar tratamento e avaliar efeitos adversos. Encaminhe para psicoterapia quando disponível, especialmente em casos moderados a graves. Em depressão resistente ou com comorbidades complexas, encaminhe para psiquiatria. A telemedicina pode facilitar o seguimento para pacientes com dificuldades de deslocamento, mantendo critérios de segurança e confidencialidade.

Atenção a populações especiais

Gravidez, lactação e depressão

Na gravidez e lactação, a escolha do antidepressivo deve ser individualizada, ponderando riscos e benefícios. Muitas vezes opta-se pela menor dose eficaz e por monitoramento conjunto com obstetrícia e psiquiatria.

Idosos

Na terceira idade, a apresentação pode ser atípica — mais apatia, queixas somáticas e declínio funcional. Adapte intervenções psicoterápicas, avalie função cognitiva, risco de quedas e interação medicamentosa ao prescrever antidepressivos.

Pacientes com doenças crônicas

Em pacientes com hipertensão, diabetes, artrite ou dor crônica, a depressão tende a agravar sintomas físicos e reduzir adesão. Protocolos integrados entre equipe médica, psicologia e reabilitação melhoram resultados e reduzem internações a longo prazo.

Implementação prática no consultório

Checklist de implantação

  • Escolha da ferramenta: adote PHQ-2 como triagem inicial e PHQ-9 para avaliação completa.
  • Fluxo de triagem: integre o PHQ-9 ao atendimento rotineiro de adultos ou em consultas de comorbidades.
  • Treinamento da equipe: capacite profissionais para conduzir entrevistas sensíveis ao risco de suicídio.
  • Plano de encaminhamentos: crie parcerias com psicologia, psiquiatria e serviços sociais.
  • Acompanhamento sistemático: agende reavaliações e use lembretes para pacientes em psicoterapia ou farmacoterapia.
  • Protocolos de segurança: tenha procedimentos claros para emergências relacionadas ao risco suicida.

Comunicação e engajamento do paciente

Adote escuta ativa, use perguntas abertas e confirme o entendimento do paciente. Explique de forma simples o significado do escore do PHQ-9, opções de tratamento e metas esperadas. Envolver familiares com consentimento pode melhorar suporte. Materiais educativos em linguagem acessível reduzem estigma e promovem adesão.

O papel da tecnologia

Formulários digitais, aplicativos de acompanhamento e telemedicina podem ampliar o alcance da triagem e do seguimento. Ferramentas baseadas em inteligência artificial podem apoiar a estratificação de risco, mas devem ser usadas com validação, supervisão clínica e respeito à confidencialidade.

Próximos passos recomendados

  • Implementar o PHQ-9 como rotina de triagem em adultos, verificando escore na consulta.
  • Estabelecer protocolo de avaliação de risco de suicídio com perguntas diretas e planos de segurança.
  • Integrar psicoterapia e farmacoterapia com monitoramento regular de resposta e eventos adversos.
  • Adaptar recursos para populações especiais (gravidez, idosos, doenças crônicas).
  • Fortalecer comunicação, reduzir estigma e promover adesão por meio de educação e envolvimento da rede de suporte.
  • Usar telemedicina quando apropriado, mantendo segurança e confidencialidade.

Ao adotar estas estratégias, o consultório de atenção primária pode identificar mais precocemente pacientes com depressão, oferecer intervenções eficazes e coordenar o cuidado multidisciplinar, melhorando desfechos de saúde mental e qualidade de vida.

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