Triagem de determinantes sociais da saúde na clínica
O ambiente social em que o paciente vive influencia diretamente resultados clínicos, adesão ao tratamento e acesso a serviços. Este texto apresenta um protocolo prático, aplicável em rotina ambulatorial brasileira, para identificar, intervir e monitorar determinantes sociais da saúde (DSS) — como insegurança alimentar, moradia instável e falta de transporte — de forma objetiva e integrada ao cuidado clínico.
Determinantes sociais da saúde: por que importar-se na prática clínica
Os DSS são as condições nas quais as pessoas nascem, crescem, trabalham e envelhecem. Na prática, fatores como insegurança alimentar, baixa renda, moradia inadequada e redes sociais frágeis impactam diretamente a adesão ao tratamento, a frequência de consultas e os desfechos clínicos em hipertensão, diabetes, doenças respiratórias e saúde mental. Reconhecer e documentar esses fatores não é estigmatizar: é ampliar a precisão do plano terapêutico e reduzir riscos evitáveis.
Triagem de determinantes sociais da saúde: ferramentas e o que medir
A triagem deve ser breve, sensível e adaptada ao contexto local. Utilize perguntas abertas e não julgativas, integrando a avaliação ao check-in, à revisão de medicação ou à anamnese inicial. Componentes essenciais a incluir:
- Moradia: estabilidade, condições ambientais (umidade, infiltração) e risco de violência.
- Segurança alimentar: acesso regular a refeições, orçamento para alimentação.
- Renda e custos: emprego, gastos com medicamentos e transporte.
- Transporte: disponibilidade para consultas e exames; possibilidade de telemedicina.
- Apoio social: presença de cuidador, isolamento social.
- Alfabetização em saúde: compreensão de orientações médicas e adesão ao tratamento.
Ferramentas internacionais como PRAPARE podem ser adaptadas ao SUS e à realidade regional. Registre os achados no prontuário eletrônico em campos específicos, garantindo privacidade e consentimento informado para encaminhamentos.
Protocolo prático em três fases (triagem, intervenção e monitoramento)
Um fluxo simples e replicável inclui: 1) triagem e detecção rápida; 2) intervenções diretas e encaminhamentos; 3) monitoramento e avaliação de impacto.
1) Triagem e detecção
- Aplicar uma triagem breve (2–5 minutos) na primeira consulta ou na revisão de histórico.
- Classificar risco (baixo, moderado, alto) e definir critérios para encaminhamento imediato (ex.: risco de violência, insegurança alimentar severa).
- Envolver assistente social ou equipe multiprofissional para casos de risco moderado/alto.
2) Intervenção e encaminhamentos
Combine medidas clínicas com acesso a recursos sociais: encaminhamentos a serviços de assistência social, programas de alimentação, apoio habitacional ou transporte. Sugestões práticas:
- Usar formulários padronizados de encaminhamento para reduzir barreiras burocráticas.
- Priorizar esquemas terapêuticos que favoreçam a adesão ao tratamento (ex.: regimes com menor frequência de doses quando clinicamente viável).
- Oferecer telemedicina ou horários flexíveis para pacientes com transporte limitado.
- Manter um catálogo atualizado de recursos locais e contatos de referência.
Materiais de educação voltados para o nível de letramento do paciente reforçam a adesão; veja, por exemplo, estratégias em educação terapêutica e adesão e em manejo prático da obesidade, que podem ser adaptadas para pacientes com baixa renda.
3) Monitoramento e avaliação de impacto
Monitore adesão ao tratamento, frequência de seguimento, internações evitáveis e mudanças em condições sociais (ex.: estabilidade habitacional). Recomenda-se revisar planos a cada 4–12 semanas, conforme gravidade. Indicadores úteis: número de encaminhamentos concluídos, tempo até atendimento social, alterações em parâmetros clínicos e redução de readmissões.
Intervenções específicas para padrões comuns
Insegurança alimentar
Triagem rápida para insegurança alimentar seguida de encaminhamento a bancos de alimento, programas municipais e assistência social. Ajustes no plano nutricional devem considerar custos e disponibilidade de alimentos; suplementação (ex.: vitamina D, ferro) quando indicada após avaliação clínica. Encaminhar a nutricionista quando possível e documentar plano de ação.
Moradia instável e condições ambientais
Identificar moradia instável ou ambientes que agravam doenças respiratórias. Encaminhar para serviços de melhoria habitacional ou assistência social; se necessário, priorizar intervenções farmacológicas que reduzam visitas presenciais enquanto se aguarda solução habitacional.
Transporte limitado e telemedicina
Oferecer teleconsultas para seguimento de pacientes crônicos quando adequado e articular parcerias com redes de transporte comunitário ou vale-transporte clínico. Telemonitorização pode reduzir visitas presenciais e melhorar adesão ao tratamento em diabetes e hipertensão.
Apoio social e rede de cuidadores
Identificar cuidador principal, oferecer treinamento e suporte emocional, e encaminhar a serviços de apoio ao cuidador. A participação do cuidador em educação terapêutica melhora adesão e manejo em condições crônicas.
Casos clínicos exemplares
Caso 1 — Maria, 58 anos: hipertensão e insegurança alimentar
Triagem revelou insegurança alimentar e moradia instável. Intervenções: encaminhamento a programa de alimentação e serviço social, simplificação do regime antihipertensivo quando possível, monitorização domiciliar da pressão arterial e material educativo adaptado ao letramento da paciente. Revisão a cada 6–8 semanas.
Caso 2 — João, 65 anos: diabetes e transporte limitado
Triagem mostrou dificuldade de deslocamento e apoio social fraco. Intervenções: agendamento com horário flexível, teleconsulta para monitoramento glicêmico, revisão do regime farmacológico visando simplificação e encaminhamento à rede social para fortalecimento de suporte familiar.
Ética, privacidade e consentimento na triagem de DSS
Respeite privacidade e autonomia: informe claramente como os dados serão usados, obtenha consentimento para encaminhamentos e segregue informações sensíveis no prontuário. Permita que o paciente recuse encaminhamentos sem prejuízo do atendimento clínico. Em projetos de pesquisa ou melhoria de qualidade, busque aprovação institucional.
Determinantes sociais da saúde: passos práticos para implementação
Para começar: implemente uma triagem breve no fluxo de atendimento, defina critérios claros de encaminhamento, crie ou atualize um catálogo local de recursos e estabeleça indicadores de monitoramento. Integre equipes multiprofissionais (assistência social, nutricionista, psicólogo, farmacêutico) e use telemedicina quando útil. A prática sistemática da triagem de DSS melhora a adesão ao tratamento, reduz eventos evitáveis e aproxima a clínica de um modelo realmente centrado no paciente.
Links internos mantidos no contexto: educação terapêutica e adesão, prevenção de quedas em idosos e manejo prático da obesidade — referências úteis para estruturar intervenções adaptadas à realidade dos pacientes.