Avaliação da anemia na atenção primária
Introdução
Você lembra qual é a última vez que avaliou sistematicamente um paciente com fadiga e palidez? A anemia é uma das condições mais frequentes encontradas na atenção primária e, quando identificada precocemente, permite intervenções simples que evitam complicações. Este artigo, voltado para profissionais de saúde, resume sinais clínicos, exames simples e estratégias iniciais de manejo prático em adultos.
Avaliação clínica inicial
Na consulta, combine história clínica dirigida e exame físico focado. Pergunte sobre perda de sangue (menstruação, hemorragias gastrointestinais, epistaxe), sintomas de síndrome constitucional, drogas que causam quilotrauma ou supressão medular, e história familiar de hemoglobinopatias.
Sinais e sintomas a procurar
- Fadiga, intolerância ao exercício, fraqueza.
- Palidez cutânea e de mucosas; taquicardia e palpitações.
- Tontura, cefaleia, dificuldade de concentração.
- Em casos leves, pode ser assintomática — atenção à triagem em grupos de risco.
Sinais de alerta (encaminhar com urgência)
- Sinais de instabilidade hemodinâmica (hipotensão, taquicardia mantida, síncope).
- Sugestão de hemorragia ativa ou perda sanguínea significativa.
- Suspeita de hemólise grave, infiltração medular ou neoplasia.
Para orientação prática sobre a anamnese e o exame físico dirigido na investigação de anemia, veja o nosso guia de avaliação clínica da anemia em adultos com passos aplicáveis no consultório.
Exames simples e interpretação
Na atenção primária, comece com exames que orientam a etiologia e a conduta inicial:
- Hemograma completo: confirma anemia (concentração de hemoglobina), avalia índices hematimétricos (MCV) e presença de anisocitose/poiquilocitose.
- Reticulócitos: avalia resposta medular; aumento esperado em hemorragia aguda e hemólise, resposta à terapia em cerca de 7 a 10 dias.
- Ferritina sérica: marcador das reservas de ferro; valores baixos são altamente específicos para deficiência de ferro, mas aumentos inflamatórios elevam a ferritina.
- TIBC / transferrina: ajudam a diferenciar deficiência de ferro de anemia da inflamação.
Como interpretar resultados comuns
- MCV baixo (microcitose) + ferritina baixa → provável anemia ferropriva.
- MCV normal ou baixo com ferritina normal/alta + história de doença crônica → considerar anemia por doença crônica (inflamatória) ou hemoglobinopatias.
- MCV alto (macrocitose) → investigar deficiência de vitamina B12 ou folato, uso de drogas, doença hepática.
Em contextos de inflamação, ferritina pode estar falsamente elevada — a OMS e outras diretrizes trazem recomendações para ajustar interpretação em presença de inflamação. Consulte as recomendações sobre ferritina para poliar avaliação populacional e individual, conforme a orientação da OMS.
Estratégias iniciais de manejo por etiologia
Anemia ferropriva
Se houver suspeita ou confirmação de anemia ferropriva, o tratamento inicial na APS costuma ser: reposição de ferro oral em doses terapêuticas. Uma opção prática é prescrever ferro oral com dose total de ferro elementar entre 120–180 mg por dia, e orientar manutenção por pelo menos 3–6 meses após normalização da hemoglobina para reabastecer reservas. Estudos e diretrizes (ex.: orientações práticas sobre reposição de ferro) sustentam essa conduta — veja também nosso material sobre manejo ambulatorial da anemia ferropriva: abordagem prática e diagnóstico e manejo inicial.
Indicações de considerar ferro intravenoso incluem intolerância importante à via oral, má-absorção, necessidade de reposição rápida (anemia sintomática grave) ou perda sanguínea contínua. Diretrizes especializadas e sociedades clínicas descrevem critérios formais — por exemplo, recomendações da British Society of Gastroenterology e de órgãos de prática clínica sobre quando optar por via IV e investigações adicionais (veja resumo em diretrizes clínicas).
Deficiência de vitamina B12 e ácido fólico
Na presença de macrocitose ou níveis baixos de B12/folato, repor conforme gravidade: pode ser via oral ou parenteral (B12 IM em deficiências mal-absortivas). Avalie causa (ex.: gastrite atrófica, uso crônico de inibidor de bomba de prótons, doença autoimune) e programe seguimento.
Anemia por doença crônica
Priorize o tratamento da condição subjacente (infecção crônica, inflamação, doença renal crônica, neoplasia). Em alguns casos selecionados, agentes estimuladores de eritropoiese são úteis em conjunto com otimização do ferro; esses tratamentos devem ser considerados com base em protocolos locais e após avaliação especializada.
Anemias hemolíticas e hemoglobinopatias
Suspeita de hemólise (reticulócitos altos, aumento de LDH e bilirrubina indireta) exige investigação e muitas vezes encaminhamento ao hematologista. Para sinais de possível hemoglobinopatia (ex.: histórico familiar, microcitose sem deficiência de ferro), encaminhe para testes específicos e aconselhamento genético quando indicado.
Monitoramento, adesão e educação
Monitore resposta terapêutica com hemograma após 4 semanas (espera-se aumento de ~1 g/dL em 2–4 semanas) e avaliar reticulócitos em 7–10 dias para resposta medular. Continue reposição de ferro por pelo menos 3 meses após normalização; muitos recomendam até 6 meses para restaurar reservas.
Oriente o paciente sobre efeitos colaterais comuns do ferro oral (náusea, constipação, dor abdominal) e estratégias para melhorar aderência: tomar com vitamina C (suco de laranja) para melhorar absorção, evitar junto com leite/calcio e certos antiácidos, informar que a coloração escura das fezes é esperada. Educação melhora adesão — veja nosso material sobre adesão terapêutica e educação em consulta para estratégias práticas.
Quando investigar além da APS e orientar encaminhamentos
- Homens adultos e mulheres pós-menopausa com deficiência de ferro: sempre investigar perda sanguínea gastrointestinal — considere investigação endoscópica segundo risco e disponibilidade.
- Anemias progressivas, pancitopenia, reticulocitopenia ou suspeita de síndrome mielodisplásica: encaminhar para hematologia.
- Anemia refratária ao tratamento apropriado ou com sinais de hemólise: investigação especializada.
Para fluxos locais e triagem, integre protocolos de rastreamento e encaminhamento: nosso conteúdo sobre rastreamento e manejo em APS pode ajudar a padronizar a prática na unidade.
Recursos e leituras recomendadas
Algumas referências úteis para aprofundamento e atualização de condutas:
- Recomendações práticas sobre reposição de ferro e manejo ambulatorial, incluindo orientações de dose e duração: Portal Secad / Artmed.
- Diretrizes sobre diagnóstico e manejo de anemia ferropriva e condutas gastroenterológicas relacionadas: Best Practice / diretivas e guidelines clínicos.
- Orientações da OMS sobre interpretação de ferritina e avaliação do status de ferro em populações: WHO ferritina guidance (2020).
Fechamento prático
Na atenção primária, a combinação de história clínica dirigida, hemograma, reticulócitos e ferritina orienta a maioria das decisões iniciais. Tratar a causa — reposição de ferro quando indicada, corrigir deficiências de B12/folato, e abordar doenças crônicas — e monitorar resposta são ações-chave. Padronize fluxos de triagem e encaminhamento na sua unidade, eduque o paciente sobre adesão e efeitos adversos e, quando houver sinais de gravidade ou etiologia não clarificada, não hesite em encaminhar para avaliação especializada.
Para protocolos práticos e algoritmos aplicáveis no consultório, consulte nossos artigos sobre manejo ambulatorial da anemia ferropriva, diagnóstico e manejo inicial e avaliação clínica da anemia.