Diarreia aguda em adultos: diagnóstico e manejo inicial
Introdução
Como diferenciar uma diarreia autolimitada de um quadro que exige intervenção imediata? A diarreia aguda — fezes líquidas ou semilíquidas mais de três vezes ao dia por menos de 14 dias — é uma queixa frequente na prática clínica e pode progredir rapidamente para desidratação e choque se não for identificada e manejada precocemente. Este guia dirigido a profissionais de saúde apresenta critérios de avaliação, diagnóstico diferencial e manejo inicial prático, com ênfase em reidratação oral, indicação de antibióticos e uso criterioso de agentes antimotilidade.
Avaliação inicial: anamnese e exame físico
Uma anamnese focada e exame físico dirigem as decisões iniciais. Pergunte sobre início e evolução, características das fezes (presença de sangue ou muco), febre, vômitos, intensidade da dor abdominal, ingestão recente de alimentos ou água suspeita, viagens, exposição ocupacional, contato com casos semelhantes e uso de medicamentos (ex.: antibióticos recentes, antiácidos com magnésio, laxantes).
Sinais de gravidade que exigem ação imediata
- Hipotensão, taquicardia ou alteração do estado mental.
- Sinais de desidratação moderada a grave (turgescência diminuída, oligúria, sede intensa).
- Febre alta persistente, sangue nas fezes ou diarreia intensa (>6 evacuações/24 h).
- Imunossupressão, idosos fracos, ou com comorbidades significativas.
Exames complementares iniciais
Nem todo caso precisa de exames. Indique coprocultura, pesquisa de leucócitos fecais ou calprotectina fecal quando houver sangue, febre ou suspeita de doença inflamatória intestinal. Solicite eletrólitos e creatinina se houver sinais de desidratação ou comorbidades. Em casos selecionados, testes rápidos (ex.: toxina de Clostridioides difficile) e exames parasitológicos podem ser úteis.
Diagnóstico diferencial prático
Considere causas comuns e menos frequentes com base na apresentação clínica:
- Infecções bacterianas: Campylobacter, Salmonella, Shigella, E. coli — frequentemente com dor abdominal e febre.
- Infecções virais: norovírus, rotavírus — quadro mais difuso, geralmente autolimitado.
- Parasitos: Giardia lamblia, Entamoeba histolytica — considerar em diarreia persistente e história de água contaminada.
- Medicamentos: antibióticos (disbiose, C. difficile), antiácidos com magnésio, laxantes, agentes oncológicos.
- Doenças inflamatórias intestinais: início agudo pode ocorrer — investigue se histórico sugestivo ou recorrência (veja também: doenças inflamatórias intestinais: reconhecimento e encaminhamento).
- Distúrbios endócrinos/metabólicos: hipertireoidismo, diabetes descompensado.
Manejo inicial — princípios e atuação prática
O objetivo imediato é corrigir a hipovolemia, controlar sintomas e identificar sinais que indiquem tratamento etiológico específico ou encaminhamento. Siga este fluxo prático:
1. Reidratação e equilíbrio hidroeletrolítico
A reidratação oral é a intervenção central para a maioria dos pacientes estáveis. Utilize soluções de reidratação oral com composição adequada de eletrólitos e glicose; ofereça volumes fracionados e monitorize resposta clínica (diurese, sinais vitais, melhora do turgor). Indique via venosa se houver vômitos incoercíveis, sinais de choque ou falha da reidratação oral.
Referências práticas das recomendações sobre reidratação estão disponíveis em organismos como a Organização Mundial da Saúde.
2. Dieta e orientações domiciliares
- Manter alimentação habitual quando tolerada; evitar alimentos fritos, condimentados e bebidas muito açucaradas.
- Incentivar ingestão fracionada de líquidos e refeições leves ricas em carboidratos simples e sal quando apropriado.
- Educar sobre sinais de alarme que justificam retorno (sangue nas fezes, febre persistente, tontura, diminuição da diurese).
3. Uso de antimotilidade e antiespasmódicos
O uso de antimotilidade (ex.: loperamida) pode reduzir frequência e melhorar conforto em diarreias não invasivas, sem febre alta nem sangue nas fezes. Evite ou use com cautela quando houver suspeita de diarreia inflamatória, cólera com toxina ou risco de retenção de patógenos invasivos.
4. Critérios para antibióticos
Antibióticos não são rotineiros. Considere tratamento empírico quando houver:
- Sinais de disenteria severa (fezes sanguinolentas) com febre persistente.
- Suspeita de Shigella (frequentemente indicado) ou cólera sintomática grave.
- Pacientes imunossuprimidos, com comorbidades graves ou risco aumentado de complicações sistêmicas.
Quando administrar, baseie a escolha no quadro clínico, história de viagem e dados epidemiológicos locais; sempre que possível, ajuste o esquema após resultado de coprocultura. Para orientações detalhadas sobre uso responsável de antimicrobianos, consulte materiais sobre uso racional de antibióticos na atenção primária e diretrizes nacionais/internacionais, como as do CDC.
5. Monitoramento e critérios de encaminhamento
- Reavaliar sinais vitais, hidratação e resposta à reidratação em 24–48 horas.
- Encaminhar para urgência/observação se houver sinais de choque, falência de reidratação oral, hiponatremia/outras alterações laboratoriais graves, suspeita de complicação intra-abdominal ou agravamento em imunossuprimidos.
- Considerar investigação adicional para diarreia persistente (>14 dias) ou recorrência — articule com serviços especializados (gastroenterologia) ou utilize algoritmos de atenção primária para DII (veja: doenças inflamatórias intestinais).
Casos especiais e tópicos relevantes
Em idosos e pacientes com polifarmácia ou comorbidades, atenção extra: interações medicamentosas e risco de descompensação aumentam a probabilidade de complicações. Para ferramentas de avaliação e desprescrição, consulte recursos sobre polifarmacia e desprescrição. Considerar também a investigação de causas não infecciosas em quadros atípicos, com auxílio da anamnese abdominal estruturada (veja: anamnese do abdome: guia prático).
Referências e leituras recomendadas
Diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) enfatizam reidratação oral e estratégias de prevenção; as recomendações do CDC trazem orientações práticas para avaliação e investigação. Para diretrizes clínicas sobre infecções entéricas e indicação de antimicrobianos, consulte as recomendações de sociedades de doenças infecciosas e guias nacionais (consultas rápidas em linhas-guia e revisões sistemáticas são recomendadas antes da prescrição).
Fontes externas selecionadas: WHO – diarrhoeal disease fact sheet, CDC – Diarrhea, e materiais de orientação clínica de sociedades especializadas sobre manejo de diarreia infecciosa.
Fechamento e recomendações práticas
Na prática, priorize triagem rápida para sinais de gravidade, correção imediata do volume intravascular (preferindo reidratação oral quando possível) e abordagem dirigida segundo suspeita etiológica. Use antimotilidade com critérios claros e reserve antibióticos para situações definidas. Documente anamnese completa e justificativa para intervenções, e organize seguimento em 24–72 horas para avaliar resposta. Integre protocolos locais e materiais de referência (OMS, CDC, diretrizes especializadas) nas condutas do seu serviço para reduzir variação prática e evitar complicações.
Links úteis dentro do nosso blog: anamnese do abdome, abordagem prática da dor abdominal inespecífica, uso racional de antibióticos e doenças inflamatórias intestinais na atenção primária.