Diarreia crônica não infecciosa: investigação e conduta prática
Introdução
Como distinguir uma diarreia crônica que exige investigação especializada de uma condição manejável na consulta ambulatorial? Pacientes com fezes aquosas ou consistência alterada por mais de quatro semanas representam um desafio frequente na prática clínica. Este texto sintetiza uma abordagem prática, orientada para profissionais de saúde, com pontos de avaliação, exames iniciais e condutas mais utilizadas, enfatizando a atenção primária como etapa-chave no encaminhamento e manejo.
Definição e classificação rápida
Diarreia crônica não infecciosa: eliminação de fezes aquosas ou de consistência alterada por >4 semanas, sem evidência de infecção aguda ativa. Classifique inicialmente em mecanismos predominantes: aumento da motilidade/secretor, má absorção, inflamação mucosa ou fecal de origem medicamentosa/endócrina.
Etiologias importantes (foco na prática)
- Doenças inflamatórias intestinais (DII) — Doença de Crohn e colite ulcerativa: suspeitar diante de sangue nas fezes, perda ponderal, febre ou quadro refratário.
- Síndrome do intestino irritável (SII) com predomínio diarréico — dor abdominal relacionada ao hábito intestinal e sintomas crônicos sem sinais de alarme.
- Síndromes de má absorção — doença celíaca, insuficiência pancreática exócrina, e estados pós-cirúrgicos que prejudicam absorção.
- Efeitos adversos de medicamentos — antibióticos, antiácidos contendo magnésio, alguns laxantes e anti-inflamatórios podem causar diarreia persistente.
- Menos comuns, mas relevantes: endocrinopatias (hipertireoidismo), síndrome do intestino curto, sobrecrescimento bacteriano do intestino delgado (SIBO) e causas funcionais complexas.
Abordagem diagnóstica prática no consultório
Anamnese dirigida
Perguntas essenciais: início e padrão (persistente vs recorrente), presença de sangue/muco, dor abdominal (relação com evacuação), perda de peso, febre, uso recente ou crônico de medicamentos (incluindo antibióticos e psicotrópicos), viagens, doenças autoimunes e histórico cirúrgico abdominal. Investigue hábitos alimentares e intolerâncias (ex.: lactose) e sintomas extraintestinais que sugerem má absorção.
Exame físico e sinais de alarme
Procure sinais de desidratação, perda ponderal, sinais de anemia, linfadenopatia, massas abdominais ou sinais peritonitais. Sinais de alarme que justificam investigação urgente/incisiva: perda de peso inexplicada, sangramento gastrointestinal, febre persistentemente elevada, anemia relevante ou alteração no estado geral.
Exames iniciais recomendados
- Hemograma, função hepática e renal — avaliam impacto sistêmico e causas metabólicas.
- Exames de fezes dirigidos conforme suspeita: pesquisa de parasitas se houver história epidemiológica, e pesquisa de leukócitos ou cultura se indicado.
- Exames específicos conforme suspeita: sorologia para doença celíaca, teste de função pancreática (ex.: elastase fecal) ou marcadores de inflamação intestinal como calprotectina fecal quando disponível.
- Em presença de sinais de inflamação ou sangue nas fezes, considerar endoscopia (colonoscopia) e imagem conforme necessário.
Para uma abordagem estruturada na atenção primária, consulte recursos práticos que orientam a avaliação inicial de queixas gastrointestinais inespecíficas e quando encaminhar: avaliação básica de queixas gastrointestinais inespecíficas e a abordagem prática da dor abdominal inespecífica.
Conduta terapêutica e manejo por hipótese diagnóstica
Doenças inflamatórias intestinais
Encaminhar para gastroenterologia se houver suspeita de DII. No nível primário, estabilize hidratação e nutrição, avise sobre sinais de alarme e inicie exames básicos para encaminhamento célere. Para orientações de diagnóstico e manejo ambulatorial de DII, veja o material disponível: Doenças inflamatórias intestinais — diagnóstico e manejo.
Síndrome do intestino irritável (SII)
Quando o quadro for compatível com SII (ausência de sinais de alarme e testes iniciais normais), foque em educação, manejo dietético (FODMAPs quando indicado), intervenção psicológica e terapias farmacológicas sintomáticas. Diretrizes recentes sobre manejo da SII podem orientar escolhas terapêuticas e expectativa de resposta.
Má absorção e insuficiência pancreática
A identificação precoce e suplementação nutricional são essenciais. Considere testes dirigidos e, quando confirmar insuficiência pancreática, discutir reposição enzimática. Em pacientes com história sugestiva de cirurgia intestinal ou perda ponderal progressiva, encaminhar para avaliação especializada.
Uso de antidiarreicos (loperamida e outros)
Loperamida é útil para controle sintomático da diarreia crônica não infecciosa em muitos pacientes; no entanto, deve ser prescrita com cautela. Evite ou reavalie seu uso se houver suspeita de Doenças Inflamatórias Intestinais ativas, dor abdominal intensa não elucidada ou risco de íleo/mega-cólon tóxico. Em casos de diarreia medicamentosa, reveja e, quando possível, suspenda o agente causal — consulte práticas de prescrição racional quando antibióticos estiverem envolvidos: prescrição racional de antibióticos.
Quando investigar com endoscopia ou imagem e quando encaminhar
Indique endoscopia se houver sinais de alarme (sangramento, anemia, perda de peso, febre, calprotectina elevada) ou se sintomas persistirem após investigação inicial. Encaminhe para gastroenterologia sempre que houver suspeita de DII, má absorção confirmada ou necessidade de terapêuticas específicas.
Integração na atenção primária: prática e organização
A atenção primária deve atuar como filtro diagnóstico e gestor do seguimento inicial, monitorando resposta terapêutica, adesão e sinais de alarme. Estruture fluxos locais para acesso rápido a exames (calprotectina, sorologias) e para encaminhamento a gastroenterologia. Recursos educacionais e protocolos locais reduzem atrasos no diagnóstico e melhoram a experiência do paciente.
Para aprofundar o manejo pragmático de sintomas gastrointestinais e triagem inicial na atenção primária, confira a orientação prática disponível em nosso blog sobre avaliação ambulatorial e encaminhamento.
Fontes e leituras complementares
Recomenda-se leitura de sínteses e diretrizes para atualizar condutas: um artigo abrangente sobre a abordagem da diarreia crônica na atenção primária fornece visão prática e organizada (veja o texto de revisão disponível em portal.secad), diretrizes da Sociedade Britânica de Gastroenterologia sobre manejo da SII e materiais sobre investigação inicial da diarreia crônica. Consulte também artigos práticos de referência para triagem e exames iniciais em atenção primária.
Leituras indicadas: Abordagem da diarreia crônica na atenção primária, diretrizes de manejo da SII (ex.: Sociedade Britânica de Gastroenterologia / revisões) e discussões práticas sobre investigação de diarreia crônica (investigação de diarreia crônica — revisão clínica).
Fechamento: insights práticos
Na prática clínica, combine uma anamnese dirigida, exame físico atento e exames básicos para definir se o caso pode ser manejado na atenção primária ou requer investigação/encaminhamento urgente. Utilize loperamida com critério para controle sintomático, reveja medicações potenciais como causa e priorize identificação de Doenças Inflamatórias Intestinais e síndromes de má absorção. Protocolos locais e acesso a testes como calprotectina fecal aceleram decisões e reduzem encaminhamentos desnecessários. Quando em dúvida, encaminhe precocemente: diagnóstico e tratamento adequados mudam prognóstico e qualidade de vida.