Avaliação básica de queixas gastrointestinais inespecíficas
Introdução
Queixas como dor abdominal, distensão, náuseas e alterações do hábito intestinal são frequentes na prática clínica e desafiam o raciocínio diagnóstico: estamos diante de uma condição orgânica, de uma Síndrome do Intestino Irritável (SII), de Dispepsia Funcional ou de intolerância alimentar, por exemplo? Uma abordagem sistemática e baseada em sinais de alarme reduz riscos e evita exames desnecessários.
Anamnese e exame físico: o núcleo da avaliação
1. Anamnese gastrointestinal direcionada
Realize uma anamnese gastrointestinal estruturada cobrindo:
- Característica da dor (início, localização, irradiação, relação com alimentação/defecação, padrão temporal).
- Sintomas associados: náuseas, vômitos, perda de apetite, pirose, regurgitação, sensação de plenitude.
- Alterações do hábito intestinal: diarreia predominante, obstipação, alternância, presença de muco ou sangramento.
- História alimentar e resposta a exclusões (lactose, glúten, FODMAPs), uso de medicamentos (AINEs, antibióticos, opioides) e consumo de álcool.
- Aspectos psicossociais: estresse, ansiedade, padrões de sono, impacto na qualidade de vida.
Associe a anamnese a um exame físico completo, avaliando sinais de peritonite, massa abdominal, hepatomegalia, linfadenopatia ou sinais de perda de peso e desnutrição.
2. Identificação de sinais de alarme
Presença de qualquer um dos seguintes exige investigação mais intensa (imagem, endoscopia, exames laboratoriais adicionais e/ou encaminhamento):
- Perda de peso não intencional
- Sangramento gastrointestinal visível ou anemia ferropriva
- Febre persistente ou sinais sistêmicos
- Histórico pessoal ou familiar de câncer digestivo, doença inflamatória intestinal ou doença celíaca
- Início em idade >50 anos sem história prévia semelhante
- Sinais de alarme neurológicos ou metabólicos que expliquem os sintomas
Investigação — quando e o que solicitar
3. Exames iniciais orientados
Em ausência de sinais de alarme, a investigação pode ser limitada e orientada pelo padrão clínico. Exames de primeira linha recomendados para triagem incluem:
- Hemograma completo (avaliar anemia)
- Glicemia de jejum e função tiroideana, conforme suspeita clínica
- Proteína C-reativa ou VHS se houver suspeita de processo inflamatório
- Calprotectina fecal quando há dúvida entre doença inflamatória intestinal e perturbação funcional — artigo do blog sobre calprotectina fecal pode ajudar na interpretação
- Testes para Intolerância à Lactose (teste de tolerância ou teste respiratório) e teste sorológico e/ou sorologia/anticorpos para doença celíaca se houver suspeita clínica — veja também doença celíaca: prática clínica
Endoscopia digestiva alta indicam-se diante de sinais de alarme, idade de início >55–60 anos (dependendo de diretrizes locais) ou refratariedade a tratamento empírico conforme protocolos — para dispepsia funcional, as diretrizes da World Gastroenterology Organisation fornecem orientações práticas sobre quando investigar: WGO — dispepsia.
4. Diretrizes para Síndrome do Intestino Irritável
O diagnóstico de SII é clínico, baseado em critérios (por exemplo, Rome IV) e exclusão de sinais de alarme. Diretrizes como as do NICE orientam o manejo ambulatorial, com foco em avaliação sintomática, educação do paciente e estratégias de seguimento. Veja nosso conteúdo prático sobre SII: diagnóstico, manejo e acompanhamento para algoritmos de conduta.
Manejo empírico e terapêutico individualizado
5. Estratégias iniciais sem sinais de alarme (manejo empírico)
Quando sinais de alarme estão ausentes, o manejo empírico é frequentemente apropriado e deve ser individualizado:
- Educação e plano de acompanhamento estruturado; estabelecer metas de melhora e prazos para reavaliação.
- Medidas dietéticas: aconselhamento sobre redução de FODMAPs em SII (ideal com suporte de nutricionista), restrição de lactose quando indicada, e revisão de hábitos alimentares.
- Intervenções farmacológicas orientadas ao sintoma: antiespasmódicos para dor espasmódica, laxantes ou opioide-antagonistas para constipação refratária, loperamida para diarreia predominante; inibidores de bomba de prótons (IBP) ou teste/tratamento para H. pylori em dispepsia conforme diretriz (ver dispepsia e refluxo: manejo inicial).
- Considerar antidepressivos em doses baixas (tricíclicos ou ISRS conforme padrão) para controle da dor visceral e sintomas associados quando presença de sobreposição com sintomas de humor ou dor crônica.
- Abordagem multidimensional: tratar fatores psicológicos (uso de terapia cognitivo-comportamental ou técnicas de manejo do estresse quando indicado).
6. Quando encaminhar ou investigar mais
Encaminhe ao gastroenterologista ou solicite exames complementares se houver:
- Sinais de alarme
- Falha do manejo empírico após período adequado (4–8 semanas para medidas iniciais; alguns tratamentos específicos podem requerer tempo maior)
- Suspeita de doença inflamatória intestinal, doença celíaca ou síndrome de má absorção
Boas práticas no seguimento
Documente a evolução com escalas de sintomas e impacto funcional; revise medicações e efeitos adversos; ajuste intervenções dietéticas com supervisão. Reavalie regularmente a necessidade de exames e mantenha comunicação clara sobre expectativas e sinais que exigem retorno imediato.
Referências práticas e recursos
Para suporte baseado em evidência consulte as diretrizes do NICE para SII e as recomendações da World Gastroenterology Organisation sobre dispepsia e intolerância à lactose. No acervo do blog, materiais úteis incluem: abordagem prática da dor abdominal inespecífica, SII: diagnóstico e manejo, dispepsia e refluxo: manejo inicial e calprotectina fecal na atenção primária.
Integre avaliação clínica cuidadosa, uso prudente de exames e manejo empírico direcionado aos sintomas. A individualização do tratamento e o acompanhamento sistemático melhoram desfechos e evitam exames e tratamentos desnecessários.
Pronto para aplicar no consultório: estruture a anamnese, verifique sinais de alarme, inicie medidas dietéticas e farmacológicas sintomáticas quando apropriado e agende reavaliação em prazo definido. Encaminhe precocemente frente a sinais de gravidade ou não resposta.