Abordagem prática da dor abdominal inespecífica
Introdução
A dor abdominal inespecífica é uma das causas mais frequentes de consulta em clínica geral e atenção primária. Como distinguir um quadro benigno de uma condição que exige investigação urgente? Neste guia prático você encontra um fluxo baseado em avaliação clínica, sinais de alarme, critérios para exames complementares e opções de manejo no consultório.
Avaliação inicial e triagem
Anamnese dirigida
Uma história bem feita é o pilar do diagnóstico. Pergunte sobre início, duração, localização, radiação, intensidade, fatores que aliviam/agravam, sintomas associados (vômitos, febre, alteração do hábito intestinal, perda de peso, sangramento) e comorbidades. Investigue também aspectos psicossociais e medicamentos recentes.
Exame físico e sinais de alarme
No exame, procure sinais focais (defesa localizada, massa palpável), peritonite e instabilidade hemodinâmica. Sempre avalie sinais de alarme que justificam investigação ou encaminhamento imediato:
- Instabilidade hemodinâmica (taquicardia, hipotensão)
- Febre alta ou leucocitose importante
- Dor severa de início súbito ou progressiva com peritonite
- Sangramento gastrointestinal, perda ponderal significativa
- Sinais de obstrução intestinal (vômitos persistentes, distensão abdominal)
- Idade avançada com novo início de dor abdominal
Ao identificar qualquer sinal de alarme, organize exames e considere encaminhamento urgente. Para casos sem sinais de alarme, priorize o raciocínio clínico para diferenciar causas orgânicas de distúrbios funcionais gastrointestinais, especialmente síndrome do intestino irritável.
Investigação diagnóstica: quando e o que pedir
Evite exames indiscriminados. A investigação deve ser guiada pela hipótese clínica e pela presença de sinais de alarme.
- Hemograma e PCR: quando há suspeita de inflamação/infeção.
- Teste de urina e exames de gravidez (em mulheres em idade fértil).
- Ureia/creatinina, eletrólitos se vômitos persistentes ou suspeita de desidratação.
- Amilase/lipase se dor epigástrica sugestiva de pancreatite.
- Calprotectina fecal se dúvida entre causa inflamatória e função intestinal (sugere investigação de DII).
- Ultrassonografia abdominal: útil quando há suspeita de colecistite, colelitíase, massas ou quando o exame físico orienta.
Diretrizes e revisões sobre a abordagem clínico-semiológica orientam o uso racional de exames e o momento do encaminhamento; ver discussões detalhadas em artigos especializados para fundamentar práticas locais (Acta Médica 2012).
Manejo pragmático no consultório
Classificação inicial e plano de ação
Separe os pacientes em três grupos: (1) necessidade de urgência/encaminhamento; (2) investigação ambulatorial dirigida; (3) provável dor funcional com manejo inicial conservador.
Intervenções não farmacológicas
Para dor de caráter funcional, estratégias comportamentais e de estilo de vida frequentemente trazem benefício:
- Orientações dietéticas individualizadas (evitar gatilhos alimentares, dieta com baixa ingestão de FODMAP quando indicado).
- Atividade física regular e higiene do sono.
- Manejo do estresse e terapias psicológicas dirigidas (por exemplo, terapia cognitivo-comportamental ou terapias dirigidas ao intestino).
- Educação do paciente sobre natureza funcional da dor e expectativas realistas do tratamento.
Revisões sobre síndromes de dor abdominal funcional descrevem evidência de eficácia de intervenções dietéticas e psicoterapêuticas (Acta Médica 2013).
Tratamento farmacológico: princípios práticos
Use medicamentos de forma criteriosa e orientada pela hipótese clínica:
- Antiespasmódicos para dor cólica predominantemente intestinal.
- Analgésicos simples (paracetamol) preferíveis a opioides; evite prescrição de opioides quando possível.
- Antidepressivos em baixas doses (tricíclicos ou ISRS) podem ajudar em dor visceral crônica e com componente de sensibilização central.
- Tratamento específico se diagnóstico orgânico (antibióticos, colecistectomia, terapia para úlcera péptica, conforme indicado).
Adote condutas de prescrição responsável e considere orientações sobre uso racional de antimicrobianos quando a hipótese infecciosa for remota (uso racional de antibióticos).
Sensibilização visceral e dor crônica
Em pacientes com dor abdominal crônica sem lesão orgânica identificável, considere a hipótese de hiperalgesia visceral e estratégias multimodais (reabilitação, psicoterapia, ajuste de sensibilização central). Revisões especializadas discutem diagnóstico e terapêutica da hiperalgesia visceral (Revista Brasileira de Anestesiologia).
Comunicação, monitoramento e seguimento
Uma comunicação clara valida a experiência do paciente e melhora adesão. Explique a diferença entre diagnóstico funcional e ausência de cuidado. Estabeleça pontos de retorno e parâmetros para reavaliação.
Checklist prático para o consultório
- Registrar local, tempo e características da dor; sinais de alarme pesquisados.
- Definir investigação inicial mínima baseada no exame e na hipótese.
- Oferecer medidas não farmacológicas e uma opção farmacológica segura de primeira linha.
- Agendar retorno em 2–6 semanas ou antes se piora; fornecer orientações específicas sobre sinais que exigem retorno imediato.
- Documentar plano e evidências discutidas; considerar encaminhamento para gastroenterologia ou dor crônica conforme evolução.
Encaminhamentos e quando investigar mais a fundo
Indique endoscopia, colonoscopia, tomografia ou avaliação especializada quando há sinais de alarme, exames alterados ou falha de manejo conservador com piora clínica. Para quadros sugestivos de dispepsia ou sintomas funcionais persistentes, integre abordagens descritas em guias de dispepsia e sintomas gastrointestinais funcionais (abordagem clínica da dispepsia).
Fechamento e recomendações práticas
A avaliação clínica da dor abdominal continua sendo a ferramenta central: uma anamnese dirigida, exame físico cuidadoso e uso seletivo de exames reduzem custos e riscos. Em muitos casos de dor abdominal inespecífica com padrão funcional, priorize intervenções não farmacológicas, educação e seguimento estruturado; use fármacos com critério e evite prescrições desnecessárias. Para apoiar a prática ambulatorial, consulte materiais práticos e protocolos locais, como a página sobre a abordagem prática e recomendações para atendimento ambulatorial básico (atendimento ambulatorial), garantindo acompanhamento e ajustes conforme a evolução.
Referências e leituras recomendadas: revisão sobre diagnóstico e manejo das síndromes funcionais (Acta Médica 2013), análise da semiologia da dor abdominal aguda (Acta Médica 2012) e discussão sobre hiperalgesia visceral (Revista Brasileira de Anestesiologia).
Links externos citados para consulta: Acta Médica (2013) — https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-881091, Acta Médica (2012) — https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-879376, revisão Hiperalgesia visceral — https://repositorio.ufba.br/handle/ri/3715