Hemorragia menstrual em coagulopatias hereditárias: algoritmo de manejo
Este artigo é dirigido a profissionais de saúde que avaliam e manejam pacientes com sangramento menstrual intenso associado a coagulopatias hereditárias. Apresenta uma abordagem prática, baseada em evidências e em consenso clínico, com ênfase em diagnóstico, estratificação de risco, intervenções rápidas e planejamento a longo prazo para consultórios e ambulatórios hospitalares.
Contexto clínico e fisiopatologia
A menstruação é um evento hemostático dependente de plaquetas e fatores da coagulação. Nas coagulopatias hereditárias a hemostasia pode estar prejudicada por disfunção plaquetária (hemostasia primária) ou por deficiência de fatores (hemostasia secundária). Condições frequentemente relacionadas ao sangramento menstrual intenso incluem:
- Doença de von Willebrand (DVW) – a coagulopatia hereditária mais comum, com alterações quantitativas (tipo 1) ou qualitativas (tipos 2 e 3) do fator de von Willebrand (VWF), comprometendo adesão plaquetária e proteção do FVIII plasmático.
- Disfunções plaquetárias hereditárias – síndromes com baixa função plaquetária que aumentam sangramentos mucocutâneos.
- Deficiências isoladas de fatores de coagulação – menos frequentes, mas relevantes em determinados cenários clínicos (por exemplo, portadoras heterozigotas sintomáticas de deficiência de fator VIII).
Pacientes com sangramento menstrual crônico frequentemente desenvolvem anemia ferropriva, com impacto na qualidade de vida. É essencial distinguir sangramento ativo (manejo agudo) de sangramento recorrente (manejo a longo prazo) e identificar comorbidades como deficiência de ferro e gravidez. A avaliação deve ser individualizada, considerando tipo de coagulopatia, gravidade do sangramento e preferência da paciente.
Pontos práticos para a clínica
- Identificar o fenótipo hemorrágico – utilize instrumentos como o PBAC (Pictorial Blood Assessment Chart) para quantificar o fluxo menstrual e monitorar resposta ao tratamento; história detalhada, exame físico e exames laboratoriais guiam a estratificação de risco.
- Abordagem diagnóstica sistemática – comece por hemograma, ferritina, ferro sérico, TTPa e TP; avalie função plaquetária quando pertinente. Solicite painéis específicos conforme suspeita (ex.: VWF:Ag, VWF:RCo e FVIII para DVW) e encaminhe a hematologia em casos complexos.
- Opções de primeira linha para controle agudo – antifibrinolíticos como o tranexâmico costumam reduzir o sangramento menstrual; a desmopressina (DDAVP) é útil em DVW tipo 1 e em alguns casos com reserva de VWF, enquanto concentrados de VWF/FVIII são indicados em DVW tipo 2B/3 ou quando DDAVP é insuficiente.
- Controle do sangramento crônico e anemia – corrija deficiência de ferro (oral ou intravenosa conforme tolerância e gravidade) e considere estratégias hormonais para reduzir o fluxo menstrual, como DIU-LNG ou anticoncepcionais combinados, avaliando risco trombótico.
- Planejamento pré‑procedimento e obstétrico – elaborer plano com hematologia para reposição de fator, profilaxia e medidas hemostáticas em cirurgias ou parto; comunicação multidisciplinar é essencial.
Algoritmo de triagem e diagnóstico (passos práticos)
- Acolhimento e história – explore duração e intensidade do sangramento, número de dias, uso de absorventes, sangramentos extragenitais (gengivas, mucosas), histórico familiar e tratamentos prévios.
- Quantificação do sangramento – registre PBAC quando possível e anote necessidade prévia de ferro ou transfusão.
- Avaliação laboratorial inicial – hemograma com ferritina e ferro sérico; TTPa e TP; contagem de plaquetas; função plaquetária quando disponível; iniciar reposição de ferro se ferritina < 30 ng/mL (ou < 70 ng/mL com sinais de anemia).
- Testes dirigidos – em suspeita de DVW, solicite VWF:Ag, VWF:RCo e FVIII para definir tipo e conduta; caso VWF esteja normal, considere outras coagulopatias hereditárias.
- Encaminhamento – referencie para hematologia se o diagnóstico for incerto, o sangramento persistir apesar de medidas iniciais ou houver necessidade de reposição de fator para procedimentos.
Abordagem terapêutica prática
O tratamento deve ser individualizado conforme tipo de coagulopatia e gravidade do quadro. A seguir, medidas comumente empregadas em consultório e na internação de baixa complexidade.
Controle agudo do sangramento menstrual
- Tranexâmico – 1 g VO a cada 8 horas por 5–7 dias, ou doses IV (ex.: 10 mg/kg) conforme protocolo institucional. Indicado em DVW e outras coagulopatias com componente fibrinolítico; monitorar função renal e contraindicações (história de trombose recente).
- Desmopressina (DDAVP) – 0,3 µg/kg IV/SC, administrada lentamente; repetir conforme resposta e sob monitorização do sódio sérico. Ineficaz em DVW tipo 3 e contraindicada em pacientes com risco de hiponatremia grave.
- Concentrado de VWF/FVIII – indicado quando DDAVP não é eficaz ou em DVW tipos 2/3; dosagem baseada em peso e níveis alvo de VWF/FVIII, com monitorização laboratorial.
- Suporte – avaliar necessidade de reposição de ferro, monitorização hemodinâmica e transfusão conforme critérios institucionais.
Manejo crônico e prevenção de recorrência
- Terapias hormonais e DIU-LNG – DIU com levonorgestrel (DIU-LNG) e anticoncepcionais combinados reduzem significativamente o fluxo menstrual; avaliar contraindicações e risco trombótico antes da indicação.
- Tratamento específico da DVW – uso sazonal ou profilático de DDAVP em DVW tipo 1; em tipos 2/3, considerar concentrados de VWF para procedimentos, parto ou sangramentos moderados a graves.
- Correção da anemia – ferro oral (ex.: sulfato ferroso) ou ferro IV conforme gravidade e tolerância; monitorar hemoglobina e ferritina a cada 4–8 semanas até correção.
- Acompanhamento com hematologia – reavaliação periódica do tipo de coagulopatia, necessidade de ajuste terapêutico e planejamento reprodutivo ou cirúrgico.
Planejamento perinatal e manejo de risco
Na gravidez, o risco hemorrágico pode variar: muitas portadoras de DVW apresentam alterações nos níveis de VWF e FVIII durante a gestação, mas o risco no parto e pós‑parto exige planejamento.
- Elaborar plano de reposição de fator/coagulante com hematologia obstétrica.
- Definir uso de antifibrinolíticos e estratégias hemostáticas no parto e no pós‑parto.
- Avaliar necessidade de profilaxia com concentrado de VWF/FVIII em fases de maior sangramento.
A integração entre obstetrícia, hematologia e anestesiologia reduz riscos hemorrágicos no período perinatal.
Condições especiais e interações
- AINES podem agravar sangramento; prefira analgésicos sem efeito sobre a hemostasia (por exemplo, paracetamol) quando possível.
- Interações medicamentosas – revise polifarmácia, especialmente em pacientes com comorbidades que utilizam anticoagulantes ou hemostáticos.
- Segurança transfusional – siga diretrizes locais para critérios de transfusão e monitorize reações adversas.
Gestão da anemia ferropriva associada ao sangramento menstrual
A anemia ferropriva agrava fadiga e reduz a capacidade funcional. O manejo inclui:
- Avaliação da ferritina – ferritina < 30 ng/mL indica deficiência; valores entre 30‑70 ng/mL exigem avaliação clínica; interpretar valores > 70 ng/mL com cautela em estados inflamatórios.
- Suplementação de ferro – escolha entre ferro oral (sulfato ferroso) ou ferro IV conforme gravidade e tolerância; monitorar hemoglobina e ferritina para guiar a duração do tratamento.
- Educação da paciente – orientar sobre dieta rica em ferro, otimização da absorção (vitamina C) e adesão ao tratamento.
Para aprofundar a anemia ferropriva na atenção primária, consulte avaliação e manejo da anemia ferropriva em APS.
Integração com educação terapêutica e adesão
A adesão é determinante para o sucesso a longo prazo. Estratégias incluem educação terapêutica estruturada, comunicação clara e estabelecimento de metas compartilhadas.
- Utilize materiais de educação terapêutica para capacitar a paciente sobre o transtorno, opções terapêuticas e sinais de alerta.
- Estimule a comunicação clínica eficaz, alinhando metas terapêuticas com preferências e qualidade de vida.
- Implemente ciclos de monitoramento com metas e feedback, conforme orienta o material sobre adesão terapêutica em doenças crônicas.
Casos clínicos ilustrativos (resumo prático)
- Caso 1: Mulher de 28 anos com sangramento menstrual intenso há 2 anos e história familiar positiva. Diagnóstico de DVW tipo 1. Uso de DDAVP em episódios agudos, implantação de DIU‑LNG para redução crônica do fluxo e monitorização de ferritina/hemoglobina a cada 3 meses.
- Caso 2: Adolescente com DVW tipo 3, sangramento intenso e anemia grave. Reposição com concentrado de VWF/FVIII em episódios agudos e planejamento multidisciplinar para redução de fluxo e suporte nutricional.
Quando encaminhar e como proceder
Encaminhe para hematologia se houver dúvida diagnóstica, necessidade de reposição de fator para procedimentos obstétricos ou cirúrgicos, sangramento refratário às medidas padrão ou indicação de avaliação genética em casos sugestivos de coagulopatias hereditárias severas. Em consultório, mantenha plano de acompanhamento com monitorização do sangramento (PBAC), anemia, adesão e planejamento reprodutivo.
Resumo das estratégias práticas
- Quantificar e monitorar o sangramento menstrual (PBAC).
- Iniciar manejo agudo com antifibrinolíticos (tranexâmico) quando indicado; usar DDAVP ou concentrados de VWF/FVIII conforme o tipo de DVW.
- Considerar redução de fluxo menstrual a longo prazo (DIU‑LNG ou hormônios) quando seguro.
- Avaliar e tratar anemia ferropriva com reposição de ferro e monitoramento adequado.
- Integrar educação terapêutica e comunicação clínica para melhorar adesão e desfechos.
Orientações finais sobre hemorragia menstrual em coagulopatias hereditárias
O manejo eficaz da hemorragia menstrual em coagulopatias hereditárias exige avaliação estruturada do fenótipo hemorrágico, diagnóstico direcionado e um algoritmo terapêutico que combine medidas agudas (tranexâmico, DDAVP, concentrados de VWF/FVIII) com estratégias de longo prazo (DIU‑LNG, anticoncepcionais, correção de anemia). A colaboração entre hematologia, obstetrícia, clínica geral e a paciente é essencial para segurança e qualidade de vida. Priorize a quantificação do sangramento, a correção da anemia ferropriva e a educação terapêutica para otimizar adesão e resultados.