Avaliação e manejo da anemia ferropriva na atenção primária
Introdução
Você atende adultos com cansaço persistente, diminuição da capacidade funcional ou exames de rotina com hemoglobina baixa? A anemia ferropriva é uma das causas mais frequentes encontradas na atenção primária à saúde e exige abordagem prática: diagnóstico laboratorial preciso, investigação da causa e reposição de ferro adequada para restaurar a capacidade de transporte de oxigênio e a qualidade de vida.
1. Diagnóstico prático para a atenção primária
Na prática clínica, comece com uma avaliação objetiva e exames simples que confirmem deficiência de ferro e descartem outras etiologias:
- Hemograma completo: define anemia (homens: Hb < 13 g/dL; mulheres não gestantes: Hb < 12 g/dL) e fornece índices celulares (VCM, HCM, contagem de reticulócitos).
- Ferritina sérica: marcador de reservas de ferro. Valores ≤ 30 ng/mL são altamente sugestivos de deficiência de ferro na ausência de inflamação. Em contexto inflamatório (PCR elevada), ferritina pode estar falsamente aumentada — considerar corte mais alto (p.ex. < 100 ng/mL) e avaliar transferrina/TSAT.
- Capacidade total de ligação do ferro (TIBC) / saturação de transferrina (TSAT): na deficiência de ferro, TIBC tende a aumentar e TSAT fica baixa (< 20%).
- Exames complementares conforme suspeita: PCR (para interpretar ferritina), função renal, testes de hemólise se indicado, pesquisa de perdas ocultas (teste de sangue oculto nas fezes) e avaliação ginecológica quando aplicável.
Referências oficiais e revisões apoiam o uso sistemático desses marcadores para diferenciação entre anemia por deficiência de ferro e anemias por doença crônica ou outras causas (ver protocolos do Ministério da Saúde e revisão sistemática).
2. Principais causas e quando investigar além da atenção primária
As etiologias mais frequentes em adultos incluem:
- Perda sanguínea crônica: sangramento gastrointestinal oculto (úlcera péptica, neoplasia, varizes), menorragia em mulheres em idade reprodutiva, epistaxes recorrentes ou uso crônico de AINE/anticoagulantes.
- Ingestão insuficiente: dietas pobres em ferro ou necessidades aumentadas (gravidez, lactação — embora aqui não foquemos em gestantes).
- Má absorção: doença celíaca, cirurgia bariátrica prévia, uso crônico de inibidores de bomba de prótons ou condições que reduzam ácido gástrico.
Na atenção primária, investigue de forma escalonada: mulheres em idade reprodutiva com menorragia devem ser avaliadas e tratadas; homens adultos e mulheres pós‑menopáusicas com anemia ferropriva requerem investigação de perda sanguínea gastrointestinal (considerar encaminhamento para endoscopia/colonoscopia conforme risco e recursos).
3. Manejo: reposição de ferro e tratamento da causa
Reposição oral
A reposição oral é a primeira escolha na maioria dos pacientes com anemia ferropriva não complicada:
- Dose usual informada: 120–180 mg de ferro elementar por dia (ajustar segundo formulação — por exemplo, sulfato ferroso 325 mg contém ~65 mg de ferro elementar; múltiplas formulações existem).
- Formas de administração: dose única diária ou regimes fracionados; evidências recentes também apoiam esquemas em dias alternados para melhorar absorção e reduzir efeitos adversos gastrointestinais, mas escolha deve considerar tolerância e adesão.
- Orientações para otimizar absorção: tomar preferencialmente com vitamina C (p.ex. suco de laranja) e evitar tomar com leite, café ou chá próximos à dose.
- Efeitos adversos: náusea, constipação ou diarreia; ajustar dose ou trocar formulação se intolerância. Educação para adesão é fundamental.
Reposição intravenosa
Indicações para considerar ferro intravenoso:
- Intolerância oral persistente ou má absorção comprovada.
- Anemia refratária à terapia oral ou necessidade de correção rápida (p.ex. anemia sintomática severa sem tempo para resposta oral).
- Perda sanguínea contínua com necessidade de reposição rápida e quando transfusões não são desejadas.
Escolha do preparado IV e monitorização seguem protocolos locais e experiências locais; encaminhe ou trate conforme disponibilidade. Sempre pesar custos/benefícios e necessidades do paciente.
Duração e monitorização
- Esperar aumento de Hb ~1 g/dL em 2–4 semanas se terapia efetiva; reavaliar Hb e ferritina em 4–8 semanas.
- Manter reposição por pelo menos 3 meses após normalização da Hb para repletar reservas (ou até ferritina alvo >50–100 ng/mL conforme contexto clínico).
- Se não houver resposta (p.ex. aumento de Hb < 1 g/dL em 4 semanas), reavaliar adesão, absorção, presença de inflamação/infeção e investigar outras causas ou encaminhar para especialista.
4. Abordagem passo a passo na consulta de atenção primária
Proposta prática em 5 passos:
- Confirme anemia com hemograma e classifique por VCM (microcítica sugere ferro; normocítica/hipocrômica pede investigação adicional).
- Solicite ferritina e TSAT (TIBC se disponível) e PCR para interpretar ferritina em situação inflamatória.
- Inicie reposição oral se indicada, oriente sobre posologia, interações alimentares e efeitos adversos; documente plano e metas de controle.
- Investigue causa: história de sangramentos, uso de AINEs/anticoagulantes, sintomas gastrointestinais, sintomas menstruais anormais; solicite exames adicionais conforme suspeita (sangue oculto, avaliação ginecológica, investigação GI).
- Monitore Hb em 4–8 semanas; se resposta inadequada, reavalie e encamine para avaliação especializada (hematologia ou gastroenterologia) quando necessário.
5. Educação nutricional e estratégias de prevenção
Além da reposição farmacológica, a educação nutricional é importante para prevenção e manutenção:
- Incentive fontes ricas em ferro heme (carnes vermelhas, aves) e não‑heme (leguminosas, vegetais verde‑escuros, cereais fortificados).
- Oriente sobre combinar alimentos ricos em ferro com vitamina C para melhorar absorção e evitar consumo simultâneo de café, chá e leite próximo às doses de ferro.
- Considere avaliação dietética em pacientes com ingestão baixa ou vegetarianos estritos e ofereça alternativas ou suplementação conforme necessidade.
6. Sinais de alerta e critérios de encaminhamento
Referencie urgentemente ou peça avaliação especializada se houver:
- Hb muito baixa (< 8 g/dL) ou sinais de instabilidade hemodinâmica.
- Sinais de perda sanguínea ativa (hematêmese, melena, sangramento uterino abundante).
- Falha de resposta à reposição oral após adesão adequada e tempo suficiente.
- Suspeita de neoplasia ou perda sanguínea gastrointestinal não explicada (encaminhar para endoscopia conforme critérios locais).
Fechamento prático
Na atenção primária, a combinação de diagnóstico laboratorial objetivo (hemograma, ferritina, TSAT/TIBC), investigação direcionada das causas mais comuns e reposição de ferro com acompanhamento programado resolve a maioria dos casos de anemia ferropriva em adultos. Priorize a identificação da causa (especialmente perdas sanguíneas), oriente sobre adesão e efeitos adversos e programe reavaliação em 4–8 semanas. Use encaminhamento quando houver sinais de alarme, resposta insuficiente ou necessidade de terapia intravenosa.
Leituras e recursos úteis
Protocolos e revisões disponíveis complementam a prática clínica: o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (Ministério da Saúde) traz orientações nacionais; uma revisão sistemática sobre medidas não farmacológicas pode ser consultada no repositório da UFC; e o resumo/artigo sobre ações na atenção básica ajuda a planejar intervenções populacionais.
Fontes externas citadas no resumo: revisão sistemática e meta-análise sobre medidas não farmacológicas e artigo sobre importância de ações na atenção básica. Consulte também as diretrizes nacionais do Ministério da Saúde para protocolos locais e fluxos de encaminhamento.
Links internos com conteúdo complementar do blog
- Para protocolos práticos de consultas: Anemia ferropriva: prática ambulatorial.
- Abordagens na APS: Manejo da anemia ferropriva na APS.
- Ferramentas de triagem e rastreamento: Rastreamento e manejo na atenção primária.
- Material sobre diagnóstico detalhado: Anemia ferropriva: diagnóstico e manejo clínico.
Palavras-chave abordadas no texto: anemia ferropriva, reposição de ferro, atenção primária à saúde, diagnóstico de anemia, educação nutricional.