As hepatites B e C são doenças virais que frequentemente evoluem de forma silenciosa e podem provocar cirrose e carcinoma hepatocelular se não diagnosticadas e tratadas. Na Atenção Primária à Saúde (APS), a triagem assertiva, a confirmação por PCR e o manejo antiviral são determinantes para reduzir morbimortalidade, prevenir transmissão e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Este texto, voltado para profissionais na APS, oferece um guia prático, baseado em evidência, para identificação, confirmação e tratamento, mantendo linguagem acessível ao diálogo com pacientes.
Hepatites B e C na APS: panorama e importância
A hepatite B (HBV) e a hepatite C (HCV) têm dinâmicas diferentes de transmissão e desfechos. A HBV transmite-se por via perinatal, parenteral e sexual, podendo permanecer crônica e levar a cirrose e carcinoma hepatocelular. A HCV tem alta probabilidade de cronicidade após infecção aguda e historicamente foi associada ao uso de drogas injetáveis e procedimentos com material contaminado. Hoje, os antivirais de ação direta (DAAs) permitem cura da HCV na maioria dos casos.
Na APS, priorize triagem em grupos de risco: pessoas que usaram drogas injetáveis, usuários de hemoderivados, contatos de casos conhecidos, gestantes, pessoas com coinfecção por HIV, imigrantes de áreas endêmicas e trabalhadores expostos a sangue. A vacinação contra HBV (vacina HBV) é a principal medida preventiva e deve ser registrada e promovida em todos os serviços primários.
Fluxo de triagem na atenção primária
Um fluxo simples e padronizado facilita a detecção precoce e o encaminhamento. Adote protocolos que contenham critérios de rastreamento, exames iniciais e critérios para solicitação de PCR.
HBV: rastreamento, vacinação e avaliação inicial
- Exames iniciais: HBsAg para detectar infecção ativa; anti-HBs para imunidade por vacinação ou cura; anti-HBc total para exposição anterior. Em dúvida, realize a tríade HBsAg/anti-HBs/anti-HBc.
- Vacinação: oferecer vacina HBV a pacientes suscetíveis e registrar esquema vacinal. Consulte materiais locais quando houver comorbidades que alterem a resposta vacinal.
- Avaliação clínica: história de uso de álcool, hepatopatias, coinfecções (HIV, HTLV), medicamentos imunossupressores; exames de rotina: ALT, AST, bilirrubinas, albumina, INR, creatinina e marcadores de fibrose (elastografia, FIB-4, APRI quando disponíveis).
HCV: rastreamento e confirmação
- Rastreamento: anti-HCV para detectar exposição. Em grupos de alto risco, repetir periodicamente conforme protocolo local.
- Confirmação: todo anti-HCV positivo deve ter HCV RNA (PCR) para confirmar infecção ativa e indicar tratamento.
- Avaliação de fibrose: realizar elastografia ou scores não invasivos (FIB-4, APRI) para estratificar risco de cirrose e priorizar condutas.
Integre os testes de hepatites B e C aos programas de rastreamento de doenças crônicas e use sistemas eletrônicos para lembretes e seguimento. Para ampliar aspectos de vacinação em adultos com comorbidades, consulte o texto sobre vacinação de adultos com comorbidades.
Confirmação por PCR e avaliação clínica
A PCR (HBV DNA ou HCV RNA) é crucial para confirmar infecção ativa, quantificar carga viral e orientar indicações terapêuticas. Em HBV, a carga viral e a ALT determinam atividade inflamatória; em HCV, a detecção de RNA confirma que o paciente é passível de cura com DAAs.
- HBV: HBsAg positivo deve levar a HBV DNA para quantificação; avaliar HBeAg quando disponível. Use elastografia ou scores para avaliar fibrose antes de decidir sobre início de terapia.
- HCV: HCV RNA positivo indica infecção ativa. Avalie função hepática, presença de cirrose e possíveis interações medicamentosas antes de iniciar DAAs.
Em coinfecções (por exemplo, HIV/HBV/HCV), ajuste o plano terapêutico considerando interações, resistência e necessidade de abordagem multidisciplinar.
Manejo com antivirais na APS
O tratamento pode ser iniciado na APS quando houver estrutura para acompanhamento e acesso aos medicamentos; casos complexos devem ser referenciados.
Hepatite B: indicação de tratamento e opções
- Indicação: CHB com HBV DNA detectável associado a ALT elevada, fibrose significativa ou fatores de risco. Decisão individualizada considerando idade, comorbidades e risco de progressão.
- Fármacos de primeira linha: tenofovir (TDF ou TAF) e entecavir são preferidos pela potente atividade antiviral e baixo risco de resistência. Ajustar vigilância renal e óssea em uso de TDF.
- Duração e monitorização: tratamento frequentemente de longa duração; monitorar HBV DNA, ALT, função renal e, quando indicado, densidade mineral óssea. Vigilância para carcinoma hepatocelular (CHC) em pacientes com fibrose avançada ou cirrose.
Hepatite C: DAAs, elegibilidade e monitorização
- Regimes: DAAs pangenotípicos como sofosbuvir/velpatasvir (Epclusa) e glecaprevir/pibrentasvir (Maviret) apresentam altas taxas de cura (>95%) com tratamentos de 8–12 semanas, dependendo da presença de cirrose e histórico prévio.
- Critérios: confirmação por HCV RNA, avaliação de fibrose (elastografia ou FIB-4), revisão de interações medicamentosas (estatinas, anticoagulantes, antirretrovirais) e comorbidades como doença renal crônica.
- Objetivo: alcançar SVR12 (ausência de HCV RNA 12 semanas após o término do tratamento). Monitorar eventos adversos (fadiga, cefaleia, náusea) e função renal quando indicado.
Verifique interações medicamentosas antes de prescrever DAAs. Em coinfecção por HIV, coordene com o serviço de infectologia para compatibilizar regimes e evitar resistência. A cura da HCV reduz mortalidade e morbilidade relacionadas ao fígado, mas pacientes com cirrose mantêm a indicação de vigilância para CHC.
Ações práticas na APS e vigilância de complicações
- Inclua HBV e HCV nos painéis de triagem de doenças crônicas e use lembretes eletrônicos para rastreamento periódico.
- Padronize listas de verificação para HBsAg/anti-HBs/anti-HBc e anti-HCV com PCR quando necessário.
- Ofereça vacinação HBV a todos os suscetíveis e registre o esquema vacinal.
- Monitore HBV DNA e ALT em HBV; confirme SVR12 em HCV e mantenha vigilância por ultrassonografia para pacientes com risco de CHC.
- Encaminhe pacientes complexos (cirrose avançada, insuficiência renal, gestação, reativação viral) para hepatologia ou infectologia.
Para informações metodológicas sobre diagnóstico e manejo em ambulatório que podem ser adaptadas à rotina de hepatites, consulte diagnóstico e manejo de doenças respiratórias ambulatoriais.
Desafios na APS e como superá-los
- Acesso a diagnóstico: negociar fluxos locais para PCR e elastografia; usar scores não invasivos (FIB-4) quando a elastografia não estiver disponível.
- Custo e disponibilidade de antivirais: priorizar pacientes com maior risco de progressão; articular com serviços regionais para acesso a DAAs e tenofovir/entecavir.
- Educação e adesão: materiais educativos, consultas breves focadas em adesão e acompanhamento telefônico durante o tratamento.
Comunicação com pacientes e aspectos especiais
Explique claramente o que significam HBsAg, anti-HCV e PCR; os objetivos do tratamento (supressão viral em HBV, SVR12 em HCV); duração do tratamento; potenciais efeitos adversos; e a importância da adesão. Em situações especiais — gestação, imunossupressão, coinfecções por HIV — planeje abordagem conjunta com especialistas.
Para referência sobre vacinação em pacientes com comorbidades e sua relação com cuidado contínuo, veja vacinação de adultos com comorbidades.
O que levar para a prática clínica
Na APS, adote um fluxo claro de triagem (HBsAg/anti-HBs/anti-HBc e anti-HCV), solicite PCR para confirmar infecção ativa, avalie fibrose (elastografia ou FIB-4) e inicie tratamento antiviral quando indicado (tenofovir/entecavir para HBV; DAAs para HCV). Garanta vacinação HBV para suscetíveis, monitore carga viral e função hepática, revise interações medicamentosas e encaminhe casos complexos. A combinação de triagem sistemática, confirmação por PCR e manejo adequado reduz transmissão, aumenta taxas de cura da HCV e controla a HBV crônica.
Palavras-chave relacionadas neste texto: vacina HBV, DAAs, tenofovir, carga viral, elastografia, SVR12, fibrose, cirrose e carcinoma hepatocelular.