O que é sensibilização central na dor crônica: sinais, diagnóstico e manejo na atenção primária
Introdução
Na atenção primária, é comum atender pacientes com dor crônica cujo quadro não se explica apenas por lesão tecidual evidente. A sensibilização central representa a amplificação das vias de dor no sistema nervoso central, levando a dor desproporcional, redução da função e piora da qualidade de vida. Reconhecer esse padrão é essencial para evitar intervenções ineficazes e priorizar estratégias que melhorem mobilidade e autonomia do paciente.
O que é sensibilização central?
A sensibilização central ocorre quando o sistema nervoso central passa a responder de forma excessiva a estímulos normais ou mesmo a estímulos sem relação direta com a lesão inicial. Envolve aumento da excitabilidade neuronal, reorganização de redes e processos inflamatórios de baixo grau. Clinicamente, costuma manifestar-se por:
- Hiperalgesia: resposta dolorosa exagerada a estímulos nocivos.
- Alodinia: dor provocada por estímulos que normalmente não causam dor (toque leve, frio, pressão suave).
- Dor difusa e persistente, frequentemente além do território anatômico da lesão.
- Sensibilidade aumentada, fadiga, piora do sono e alterações de humor.
Essas alterações de modulação da dor podem persistir mesmo após a resolução da lesão estrutural inicial, o que torna o manejo clínico centrado na função e não apenas na imagem ou no achado anatômico.
Como reconhecer sensibilização central na atenção primária
A avaliação clínica deve ser estruturada e orientada para identificar sinais que sugerem sensibilização central, orientando decisões terapêuticas e necessidade de encaminhamento. Atenha-se a:
- Dor presente por >3 a 6 meses, frequentemente em múltiplos territórios.
- Dor desproporcional ao exame físico ou a exames complementares.
- Relatos ou observação de hiperalgesia e alodinia.
- Queixas associadas de sono não reparador, fadiga e alterações de humor (ansiedade, depressão).
- Fraca resposta a intervenções convencionais isoladas (analgésicos simples, repouso).
Ferramentas como o Central Sensitization Inventory (CSI) auxiliam na triagem e na identificação de comorbidades associadas. Pacientes com escores elevados no CSI tendem a se beneficiar de abordagens multimodais mais amplas do que apenas tratamentos locais.
Durante a consulta, mantenha vigilância para sinais de alerta que justifiquem investigação adicional: sinais neurológicos focais, perda progressiva de função, suspeita de doença inflamatória sistêmica, neuropatias específicas ou doenças autoimunes.
Avaliação e manejo da dor crônica por sensibilização central na atenção primária
O manejo é multidisciplinar e individualizado. Três pilares orientam a prática clínica:
- Avaliação biopsicossocial: considerar fatores biológicos, psicológicos (catastrofização, ansiedade, depressão) e sociais (apoio, trabalho, estressores).
- Triagem por instrumentos: uso do CSI, escalas de sono e instrumentos para ansiedade e depressão (por exemplo, PHQ-9, GAD-7).
- Plano terapêutico com metas funcionais: objetivos claros e monitoramento periódico, priorizando intervenções com evidência na dor crônica.
Abordagem não farmacológica: educação, fisioterapia e atividade
- Educação sobre dor: explicar que a dor pode persistir sem dano tecidual ativo e que o foco é recuperar função.
- Exercício gradual e orientado: programas de atividades progressivas (caminhada, treino de resistência) que aumentam tolerância e promovem plasticidade neural adaptativa.
- Fisioterapia direcionada: exercícios funcionais, técnicas de relaxamento muscular e mobilizações suaves com objetivo de restaurar movimento e reduzir a sensibilidade.
- Intervenções psicossociais: terapia cognitivo-comportamental (TCC) e abordagens de aceitação (ACT) reduzem medo, catastrofização e melhoram adesão.
- Higiene e tratamento do sono: otimizar sono, investigar apneia do sono quando indicado, pois o sono influencia diretamente a sensibilização.
- Mindfulness e técnicas de relaxamento como complemento para reduzir a saliência da dor.
Opções farmacológicas na sensibilização central
A farmacoterapia deve integrar um plano multimodal, sempre com metas de melhora funcional e vigilância de efeitos adversos:
- Analgesia básica: paracetamol e AINEs quando apropriados, avaliando riscos e benefícios.
- Medicamentos com efeito sobre dor neuropática/central: inibidores de recaptação de serotonina e noradrenalina (ex.: duloxetina, venlafaxina) e anticonvulsivantes (gabapentina, pregabalina) em cenários selecionados.
- Antidepressivos tricíclicos (ex.: amitriptilina) podem ajudar quando há insônia associada, porém cuidados em idosos e com comorbidades cardiopulmonares.
- Opioides: não são primeira linha na sensibilização central; considerar apenas em casos selecionados, com doses baixas e monitorização rigorosa.
- Neuromodulação não invasiva (TENS) pode ser um complemento sintomático em alguns pacientes.
Intervenções comportamentais e manejo de comorbidades
- Tratar ansiedade e depressão adequadamente pode reduzir a sensibilidade à dor e melhorar adesão terapêutica.
- Avaliar e tratar distúrbios do sono, incluindo apneia, quando indicado.
- Planejamento de atividades e gestão da fadiga para recuperar função.
- Revisão de medicamentos para evitar polifarmácia e interações prejudiciais.
Quando encaminhar
Encaminhe para especialista quando houver dor refratária a manejo multimodal na atenção primária, suspeita de neuropatia focal, sinais de doença inflamatória ou autoimune, ou impacto funcional e psicológico significativo que exija abordagem especializada.
Casos clínicos exemplares de sensibilização central
- Caso 1: mulher, 48 anos, dor lombar difusa por 9 meses, sono pobre e ansiedade leve; CSI elevado. Plano: educação, fisioterapia gradual e TCC — melhora funcional em 12 semanas.
- Caso 2: homem, 62 anos, dor nos membros inferiores com hiperalgesia e alodinia leve; comorbidades: hipertensão e depressão leve. Plano: iniciar duloxetina, otimizar sono e fisioterapia orientada — melhora em 8–12 semanas.
Estratégias práticas para o dia a dia na atenção primária
Algumas ações rápidas para incorporar na rotina clínica:
- Explique a sensibilização central já na primeira consulta de dor crônica.
- Utilize o CSI para triagem e para definir encaminhamentos.
- Estabeleça metas funcionais mensuráveis e reveja o plano a cada 6–12 semanas.
- Priorize exercícios graduados com supervisão de fisioterapia e suporte psicológico quando necessário.
- Monitore sono, saúde mental e polifarmácia para otimizar resultados.
Para aprofundar conceitos sobre manejo da dor crônica na prática clínica e ferramentas de triagem, consulte os materiais relacionados disponíveis, por exemplo o post sobre dor crônica prática clínica, orientações sobre triagem depressão primaria na atenção primária e a discussão sobre sono e saúde cardiovascular, que traz elementos úteis para avaliação do sono em pacientes com dor.
Resumo prático para atenção primária sobre sensibilização central
Priorize a recuperação da função: ao identificar sensibilização central, aplique um plano multimodal que combine educação, exercícios progressivos, fisioterapia, intervenções psicossociais e farmacoterapia seletiva (quando indicada). Evite focar exclusivamente em tratamentos baseados na lesão tecidual quando não há evidência de dano ativo. Mantenha acompanhamento regular avaliando função, sono e bem-estar emocional, ajustando terapias conforme resposta clínica para melhorar qualidade de vida e autonomia do paciente.