Violência doméstica: guia prático para médicos
A violência doméstica é um problema de saúde pública com impacto direto na segurança, na qualidade de vida e na continuidade do cuidado. Muitos casos chegam ao consultório em estágios avançados ou com consequências de longo prazo. Este guia, voltado ao profissional de saúde, descreve como identificar sinais, documentar de forma adequada (incluindo documentação forense), oferecer apoio imediato e estruturar encaminhamentos seguros na atenção primária, no pronto atendimento e em serviços especializados.
Violência doméstica: sinais no consultório
Identificar violência doméstica vai além de notar lesões visíveis. Observe sinais físicos, comportamentais e sociais que indiquem risco ou controle por terceiros.
- Padrões de lesões atípicas: lesões em áreas normalmente protegidas, múltiplos episódios em diferentes fases de cicatrização, marcas de estrangulamento ou hematomas em locais fáceis de ocultar.
- História inconsistente: relatos que variam no tempo, explicações que não condizem com a evolução clínica ou pressa em encerrar a consulta.
- Sinais de controle e isolamento: monitoramento de atividades, controle financeiro, ausência de rede de apoio ou recusa do acompanhante em se afastar durante a consulta.
- Impacto psicológico e clínico: ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático, insônia, piora de doenças crônicas e reaprendizagem de adesão a tratamentos.
- Contexto socioeconômico: dependência financeira, desemprego do agressor, presença de menores na casa ou falta de recursos para saída segura.
Triagem e abordagem inicial
A triagem deve ser feita com empatia, sigilo e sem julgamentos. Ambiente privado, linguagem neutra e perguntas abertas aumentam a probabilidade de relato espontâneo. A triagem integrada à rotina da atenção primária facilita detecção precoce.
- Privacidade: garanta que o(a) paciente esteja sem acompanhantes que possam intimidar ou monitorar.
- Questões seguras: perguntas como “Você se sente seguro(a) em casa?” ou “Alguém controla suas finanças, suas saídas ou seu contato com outras pessoas?”
- Ritmo e autonomia: respeite o tempo do paciente; ofereça possibilidade de retomar a conversa em outro momento.
- Plano de segurança: quando houver risco, discuta opções práticas (rotas de saída, contatos de emergência, abrigo), sem pressionar por decisões imediatas.
Exemplo de roteiro de triagem
- Você se sente seguro(a) em casa?
- Alguém já o(a) ameaçou, agrediu ou manteve controle sobre suas decisões e dinheiro?
- Você tem para onde ir em caso de emergência?
- Existe rede de apoio — família, amigos, serviços comunitários — com quem possa contar?
Documentação médica e documentação forense
A documentação é elemento-chave para proteção legal e continuidade do cuidado. Registre de forma objetiva e cronológica, preservando a cadeia de custódia quando relevante.
- Descrição objetiva: local, dimensões, aspecto, evolução e data/hora de cada lesão; evite termos avaliativos sem base clínica.
- Body map e fotos: use mapas corporais padronizados e fotografe somente com consentimento informado; armazene mídias com controle de acesso.
- Registro de sintomas: documente efeitos físicos, emocionais e sociais (sono, apetite, capacidade de trabalho).
- Documentação forense: quando houver necessidade de perícia, mantenha registros que permitam avaliação externa (datas, evolução, cadeia de custódia das imagens).
- Plano de segurança documentado: registre as opções discutidas e as decisões do paciente, bem como encaminhamentos realizados.
Encaminhamento, suporte e rede de proteção
Os encaminhamentos devem ser claros, acessíveis e centrados nas necessidades do(a) paciente. Integre serviço social, psicologia, assistência jurídica e abrigamento conforme o risco identificado.
- Avaliação de risco: use escalas validadas quando disponíveis e ajuste ao contexto local.
- Encaminhamento rápido: tenha fluxos prontos para serviços de proteção, orientação jurídica e abrigo.
- Acompanhamento contínuo: marque retorno para reavaliação da segurança, adesão ao plano e suporte emocional.
- Rede comunitária: conecte o paciente a grupos de apoio, linhas de ajuda e serviços locais.
Para ampliar ferramentas práticas, consulte materiais sobre triagem, estratégias de segurança no cuidado de pacientes vulneráveis e modelos de encaminhamento e coordenação entre níveis — termos que também se aplicam à organização de fluxos para violência doméstica.
Aspectos legais, éticos e proteção do paciente
Respeite legislação local e princípios éticos: confidencialidade, autonomia, não discriminação. Notificação obrigatória deve ser seguida quando houver risco iminente ou envolvimento de menores, conforme a lei vigente.
- Notificação: informe-se sobre obrigações legais no seu estado ou município e sobre os limites da confidencialidade.
- Autonomia: apresente opções e respeite as escolhas do paciente, mesmo que a saída não ocorra imediatamente.
- Equidade: aborde sem preconceitos relacionados a gênero, orientação sexual, raça, religião ou condição socioeconômica.
Implementação prática na atenção primária
Transformar diretrizes em rotina exige treinamento da equipe, protocolos simples e recursos acessíveis.
- Capacitação: treine toda a equipe em reconhecimento, triagem, documentação e encaminhamentos sensíveis.
- Espaço seguro: disponha de sala privada e procedimentos para separar acompanhantes quando necessário.
- Modelos padronizados: incorpore body map, formulário de violência doméstica e checklists de plano de segurança no prontuário.
- Fluxos locais: mantenha lista atualizada de contatos de assistência social, psicologia, defensoria e abrigos.
Casos clínicos ilustrativos
Caso A: jovem adulta com lesões repetidas
Mulher de 25 anos com lesões em fases de cicatrização; histórias variáveis. A equipe realizou triagem em ambiente privado, usou body map e documentou plano de segurança. Encaminhou para serviço social e psicologia; o registro objetivo facilitou o acompanhamento e a aceitação de recursos.
Caso B: adulto com controle financeiro e medo
Homem de 38 anos relata controle sobre finanças e restrição de contatos. Avaliação de risco e plano de saída foram discutidos em sigilo; houve articulação com serviço social e orientação jurídica. O reconhecimento do controle social foi determinante para a estratégia de proteção.
Benefícios esperados
Adotar práticas estruturadas de triagem, documentação forense, plano de segurança e encaminhamento gera:
- Detecção precoce de violência doméstica e redução de danos a curto e longo prazo.
- Maior segurança por meio de planos de saída e redes de proteção.
- Continuidade do cuidado facilitada por prontuário padronizado.
- Empoderamento do paciente ao oferecer opções respeitando a autonomia.
Próximos passos para o consultório
Aqui estão ações imediatas para implementar no seu serviço:
- Realizar treinamento breve com a equipe sobre triagem, confidencialidade e encaminhamentos.
- Criar um espaço privado e um roteiro de atendimento para situações sensíveis.
- Adotar body map e modelo padronizado de prontuário para violência doméstica.
- Elaborar lista local de contatos de proteção, assistência social, psicologia e suporte jurídico.
- Iniciar conversas sobre segurança com pacientes, respeitando autonomia e sem pressões.
Este guia prático oferece caminhos objetivos para atuar em violência doméstica na atenção primária e serviços de urgência. Atualize protocolos conforme a legislação local e os recursos disponíveis, e mantenha a equipe treinada para garantir cuidado seguro, ético e centrado no paciente.
Observação: adaptações são necessárias conforme leis e recursos municipais ou estaduais; consulte protocolos institucionais locais para orientações específicas.