O que é hemocromatose hereditária?
A hemocromatose hereditária é uma doença genética caracterizada pela absorção intestinal excessiva de ferro, com depósito progressivo desse mineral em órgãos como fígado, pâncreas, coração e articulações. A forma mais frequente está associada a mutações no gene HFE (principalmente C282Y em homozigose), embora variantes como H63D e outras possam modular o risco. Ter uma mutação não equivale necessariamente a doença clínica: a penetrância é variável e nem todos os portadores desenvolvem sobrecarga de ferro clinicamente significativa.
Genética e fisiopatologia
- Genética: mutações no gene HFE (C282Y, H63D) são as causas mais comuns; outras formas não-HFE também existem.
- Mecanismo: as alterações genéticas reduzem a produção ou a ação da hepcidina, hormônio central na regulação do ferro. Menor hepcidina aumenta a entrada de ferro intestinal e a liberação de ferro dos macrófagos, favorecendo a sobrecarga tecidual.
- Órgãos afetados: fígado (deposito inicial e risco de cirrose), pâncreas (risco de diabetes), articulações (artropatia), pele (hiperpigmentação) e coração (cardiomiopatia e arritmias).
Diagnóstico: como reconhecer e confirmar
O diagnóstico combina suspeita clínica, exames laboratorias e, quando indicado, investigação genética. O objetivo é identificar a sobrecarga de ferro antes de ocorrer dano irreversível aos órgãos.
Sinais clínicos
- Queixas inespecíficas e insidiosas: fadiga, fraqueza, perda de desempenho, dor articular (mãos, punho, joelho), desconforto abdominal e hiperpigmentação cutânea.
- Sinais de complicações: hepatomegalia, icterícia, ascite, diabetes tipo 2 precoce, sintomas de insuficiência cardíaca ou arritmias quando avançada.
- História familiar sugestiva: parentes de primeiro grau com ferritina elevada, diagnóstico de hemocromatose ou doença hepática não explicada.
Confirmação diagnóstica: ferritina e saturação de transferrina
- Saturação de transferrina (%SAT) elevada é o sinal bioquímico inicial mais sensível; valores frequentemente superiores a 45% em homens e limiares menores em mulheres sugerem investigação adicional.
- Ferritina sérica elevada indica excesso de reservas de ferro, embora também aumente em inflamação, infecção ou doença hepática. A interpretação deve considerar contexto clínico e marcadores inflamatórios.
- Teste genético do gene HFE (C282Y, H63D) ajuda a confirmar a predisposição genética quando associado a alterações bioquímicas.
- Imagem hepática (ressonância magnética com quantificação de ferro hepático) é útil para quantificar carga de ferro; biópsia hepática raramente é necessária com técnicas de imagem modernas.
Para entender melhor a interpretação de exames no consultório, consulte a página sobre interpretação de exames de rotina. Na avaliação diferencial, lembre-se de condições como anemia ferropriva, cuja abordagem de diagnóstico e manejo é distinta.
Tratamento e manejo prático
O objetivo terapêutico é reduzir as cargas de ferro e prevenir dano orgânico. Iniciado cedo, o tratamento é geralmente eficaz na estabilização e prevenção de complicações.
Flebotomia (sangria terapêutica)
- É a primeira linha de tratamento na maioria dos casos de hemocromatose hereditária vinculada ao HFE. A flebotomia remove ferro diretamente por retirada de sangue periférico.
- Frequência inicial costuma ser 1 a 2 vezes por semana até atingir ferritina alvo; posteriormente, sessões de manutenção são espaçadas conforme resposta.
- Meta de ferritina frequentemente entre 50–100 ng/mL, ajustada individualmente para evitar anemia iatrogênica.
Quelantes de ferro
- Em pacientes em que a flebotomia é contraindicada (anemia significativa, acesso venoso inadequado ou comorbidades), podem ser utilizados quelantes como deferasirox ou deferoxamina, sob supervisão especializada.
Monitoramento e seguimento
- Controle periódico de ferritina sérica e saturação de transferrina para orientar frequência de flebotomias e manutenção.
- Avaliação hepática anual — com atenção especial para sinais de cirrose. Em pacientes com cirrose, rastreamento de carcinoma hepatocelular é indicado.
- Rastreamento e acompanhamento de familiares de primeiro grau quando houver diagnóstico confirmado, com aconselhamento genético conforme a necessidade.
Estilo de vida e dieta
- Evitar consumo excessivo de álcool, que potencializa o dano hepático.
- Suspender suplementos contendo ferro e evitar uso prolongado de vitamina C em altas doses sem indicação clínica, pois pode aumentar a absorção intestinal de ferro.
- Manter alimentação equilibrada e orientada por profissional de saúde quando necessário; pequenas modificações podem reduzir fatores de estresse hepático.
Implicações para familiares e avaliação genética
Por ser uma condição hereditária, é importante oferecer rastreamento básico (ferritina e saturação de transferrina) e, quando indicado, teste genético a parentes de primeiro grau. O aconselhamento genético ajuda a esclarecer riscos, implicações reprodutivas e necessidade de acompanhamento clínico, especialmente em populações de maior prevalência.
Interação com outras condições médicas
A hemocromatose hereditária pode coexistir com doenças como diabetes mellitus tipo 2, doenças hepáticas crônicas e cardiopatia. O manejo frequentemente exige equipe multidisciplinar (hepatologia, hematologia, endocrinologia e cardiologia) para prevenção e detecção precoce de complicações. Em consultas de atenção primária, integrar cuidados preventivos, como o rastreamento de câncer colorretal e estratégias gerais de prevenção, é recomendável. Em pacientes idosos, abordar aspectos funcionais e risco de quedas — por exemplo, seguindo orientações de prevenção de quedas em idosos — também pode fazer parte do cuidado integral.
Resumo prático para clínicos
- Suspeitar hemocromatose hereditária quando houver saturação de transferrina elevada associada a ferritina sérica aumentada, principalmente com história familiar positiva.
- Confirmar predisposição genética com teste HFE quando indicado e quantificar dano orgânico (ressonância magnética hepática, função hepática, glicemia, avaliação cardíaca).
- Tratar com flebotomia até metas de ferritina, usar quelantes quando flebotomia não for viável e programar seguimento para rastreamento de cirrose e carcinoma hepatocelular.
- Aconselhar e rastrear familiares de primeiro grau; considerar encaminhamento para aconselhamento genético.
Atualizações e perspectivas de pesquisa
Estudos recentes investigam variabilidade fenotípica entre portadores de mutações HFE, o papel de outros genes reguladores do ferro e métodos não invasivos mais precisos para quantificar reserva de ferro tecidual. Pesquisas também avaliam impacto de intervenções precoces na qualidade de vida e na prevenção de complicações como cirrose e cardiomiopatia.
Considerações finais sobre hemocromatose hereditária
Reconhecer precocemente a hemocromatose hereditária e iniciar tratamento adequado, predominantemente por flebotomia, reduz a morbidade e melhora prognóstico. Profissionais de atenção primária devem estar atentos a sinais inespecíficos, interpretar corretamente ferritina e saturação de transferrina, e encaminhar quando necessário para avaliação genética e especializada. Para pacientes, o entendimento da condição, a adesão ao tratamento e o rastreamento familiar são fundamentais para prevenir complicações a longo prazo.