Hiperuricemia e gota: diagnóstico e manejo prático
Introdução
Como distinguir a hiperuricemia transitória da doença que precisa de intervenção? Quais medidas reduzirão a frequência de crises de gota e prevenirão danos articulares e renais? Este guia prático, voltado a profissionais de saúde, resume a fisiopatologia, o diagnóstico e o tratamento farmacológico inicial, além das estratégias para a prevenção de recorrência.
1. Definição e fisiopatologia — o que o clínico precisa saber
A hiperuricemia é tipicamente definida por níveis séricos de ácido úrico acima de ~6,8 mg/dL em mulheres e ~7,0 mg/dL em homens (limite de saturação). Resulta de aumento da produção, redução da excreção renal ou combinação de ambos. Quando a saturação tecidual é alcançada, formam-se cristais de urato monossódico que podem provocar artrite inflamatória aguda, formação de tofos e nefrolitíase.
Do ponto de vista clínico, nem toda hiperuricemia exige terapia redutora imediata; a indicação depende do histórico de crises, presença de tofos, litíase renal, ou comorbidades associadas (p. ex. doença renal crônica — DRC).
Sinais fisiopatológicos relevantes
- Deposição intra-articular de cristais → resposta inflamatória intensa.
- Excreção renal reduzida como causa mais comum na prática clínica.
- Interação com comorbidades: hipertensão, obesidade, síndrome metabólica, DRC.
2. Diagnóstico: como e quando confirmar
O diagnóstico definitivo de gota baseia-se na identificação de cristais de urato monossódico no líquido sinovial por microscopia com luz polarizada. Na prática ambulatorial, combine:
- Anamnese compatível (crise monoarticular, início noturno, predileção por MTFJ).
- Exame físico: dor intensa, rubor e edema local.
- Dosagem de ácido úrico: útil fora da crise (durante crise pode estar normal ou elevado).
- Imagem: ultrassom ou RX para avaliar tofos e erosões em casos crônicos; US com sinal de duplo contorno pode apoiar o diagnóstico.
Encaminhe para investigação de função renal e avaliação de fatores de risco cardiovascular. Pacientes com sinais de DRC devem seguir protocolos de triagem e encaminhamento apropriados (triagem e manejo da doença renal crônica).
3. Manejo da crise aguda — escolha rápida e segura
Objetivo: controlar a dor e a inflamação o mais cedo possível. As opções principais são:
- AINEs (naproxeno, indometacina) — preferir quando não houver contraindicação renal ou risco gastrointestinal/ cardiovascular.
- Colchicina — dose oral ajustada (regimes de baixa dose atualmente preferíveis); cuidado em insuficiência renal ou uso concomitante de inibidores potentes de CYP3A4. Em administração tardia, benefício reduz.
- Corticosteroides — sistêmicos ou injetáveis intra-articulares (quando monoartrite e sem sinais de infecção local).
Importante: não interromper a terapia redutora de urato (se já em uso) durante a crise; manter alopurinol/febuxostate evita flutuações que possam precipitar novas crises. Para ajustes de dose em insuficiência renal, consulte diretrizes locais e guias práticos de ajuste (ajuste de dose na insuficiência renal).
4. Terapia redutora de ácido úrico (TRAU) — quando iniciar e metas
Indicações claras para iniciar terapia redutora de urato incluem:
- ≥2 crises por ano;
- Presença de tofos;
- Doença renal crônica com risco de nefrolitíase ou progressão;
- História de litíase renal por urato.
Fármacos de primeira linha:
- Alopurinol — iniciar em baixa dose e escalonar até meta (habitualmente <6 mg/dL; <5 mg/dL em doença avançada/ tofos), com ajuste conforme função renal.
- Febuxostate — alternativa se intolerância ou falha terapêutica com alopurinol; atenção a sinais cardiovasculares em pacientes de alto risco.
Durante titulação do urato, recomenda-se profilaxia de curta duração para evitar crises (colchicina 0,5–1 mg/dia ou AINEs conforme tolerância) por 3–6 meses, ou mais se tofos persistirem. A indicação e a estratégia devem seguir diretrizes como as da ACR e EULAR para manejo a longo prazo (ver recomendações: ACR gout guideline e EULAR gout guideline).
5. Prevenção de recorrência: medidas não farmacológicas e acompanhamento
Além da TRAU, as intervenções no estilo de vida reduzem recidivas e riscos sistêmicos:
- Hidratação adequada e perda de peso em pacientes com sobrepeso/obesidade.
- Redução do consumo de alimentos ricos em purinas (carnes vermelhas, frutos do mar) e de bebidas alcoólicas, especialmente cerveja.
- Avaliar e otimizar comorbidades — controle da hipertensão, do diabetes e da dislipidemia; isso impacta tanto na evolução da DRC quanto na carga de urato.
Programas de educação e adesão aumentam a eficácia das medidas prescritas — integrar estratégias de educação terapêutica e adesão e de aconselhamento nutricional (nutrição prática para prevenção cardiovascular e sobrepeso).
6. Monitoramento e manejo de comorbidades
Mensurar ácido úrico fora de crises para guiar titulação (meta usual <6 mg/dL; individualizar). Monitorar função renal e eletrólitos antes e durante a introdução de drogas redutoras — ajuste de doses pode ser necessário: consulte guias de ajuste para insuficiência renal (ajuste de dose na insuficiência renal).
Pacientes com hiperuricemia grave ou progressão rápida de DRC podem necessitar de encaminhamento precoce ao nefrologista. A literatura sugere associação entre hiperuricemia e risco de DRC, mas a causalidade e o benefício da intervenção em assintomáticos continuam em estudo (ver revisão Dalbeth et al., Lancet).
7. Complicações de doença não tratada
- Formação de tofos com erosões articulares permanentes.
- Nefrolitíase por urato e potencial agravamento da função renal.
- Aumento da morbidade cardiovascular associado às comorbidades que coexistem.
Referências e leituras recomendadas
Para atualização baseada em evidências consulte as diretrizes e revisões internacionais e nacionais, incluindo as recomendações da ACR, as orientações da EULAR e as publicações de revisão sobre fisiopatologia e manejo (por exemplo, revisão de Dalbeth e colaboradores: PubMed). Para recomendações locais inclua as publicações da Sociedade Brasileira de Reumatologia e protocolos institucionais.
Fechamento prático
Na prática clínica, priorize diagnóstico por cristaloscopia sempre que possível; trate a crise de forma rápida e segura; e inicie terapia redutora de urato quando houver indicação (repetição de crises, tofos, litíase ou DRC). Combine tratamento farmacológico com mudanças dietéticas e controle das comorbidades, monitorando função renal e adesão ao plano terapêutico. Diretrizes atualizadas (ACR/EULAR) e colaboração com nefrologia e reumatologia auxiliam nos casos complexos.