Sepse na atenção primária: reconhecimento rápido
Foco profissional — este artigo destina-se a médicos, enfermeiros e equipes de atenção primária que atuam na linha de frente do diagnóstico de infecções com risco de evolução para sepse. Aborda reconhecimento precoce, estratificação de risco, critérios objetivos de encaminhamento, escolhas iniciais de antibioticoterapia e estratégias de comunicação com pacientes e serviços de urgência. O texto é técnico, mas redigido em linguagem acessível e prática.
Sepse na atenção primária: visão geral
A sepse é a resposta desregulada do hospedeiro a uma infecção, podendo causar disfunção orgânica e, em fases avançadas, choque séptico. Na prática ambulatorial, as infecções predisponentes costumam ser pneumonia, infecção do trato urinário, pielonefrite, infecções de pele ou de tecidos moles, entre outras. Reconhecer sinais de alerta precocemente permite encaminhamento rápido, coleta de culturas quando possível, início adequado de antibioticoterapia e suporte clínico até a avaliação hospitalar.
Dados mostram que atrasos no reconhecimento e no encaminhamento elevam a mortalidade relacionada à sepse. Por isso, na atenção primária a tomada de decisão ágil — com baixo limiar para escalonar cuidado quando há suspeita — é determinante para melhores desfechos.
Reconhecimento precoce: sinais, sintomas e ferramentas úteis
Na atenção primária, a apresentação pode ser sutil, especialmente em idosos e imunossuprimidos. A avaliação combina história, exame físico e sinais vitais; exames laboratoriais como lactato, hemograma e função renal ajudam na estratificação quando disponíveis.
Sinais de alerta a observar no consultório
- Alteração do estado mental ou confusão súbita (freqüentemente em idosos)
- Taquipneia ou dificuldade respiratória inexplicada
- Taquicardia marcada (>100 bpm) ou pressão arterial sistólica (PAS) ≤ 100 mmHg
- Temperatura anormal (>38,3 °C ou <36 °C) ou febre sem fonte clara
- Redução da diurese ou sinais de hipoperfusão periférica (pálidez, pele fria, extremidades mal perfundidas)
- Alterações laboratoriais quando disponíveis (p.ex., lactato elevado, leucocitose ou leucopenia significativa)
Isoladamente esses achados não definem sepse, mas, diante de infecção suspeita ou confirmada, aumentam a probabilidade de evolução para sepse ou choque séptico.
Ferramentas de triagem úteis na atenção primária
- qSOFA — três itens simples (alteração do estado mental, FR ≥ 22/min, PAS ≤ 100 mmHg) para estratificação rápida do risco em pacientes com infecção suspeita; não substitui avaliação clínica completa.
- MEWS/NEWS — sistemas de alerta que detectam deterioração clínica com maior sensibilidade, úteis em consultórios, enfermarias e visitas domiciliares.
- Em idosos e imunossuprimidos, combine escalas com avaliação funcional e observação clínica para reduzir falso-negativos.
Documente sempre sinais vitais, observações clínicas e a hipótese diagnóstica para facilitar a comunicação com a rede de urgência e com familiares.
Estratificação de risco e decisão clínica: como decidir encaminhar
A estratificação na atenção primária combina dados objetivos, experiência e recursos locais. O objetivo é separar pacientes que podem ser manejados com observação e retorno urgente daqueles que exigem avaliação hospitalar imediata.
Estratificação prática em três níveis
- Risco baixo: infecção provável, sinais vitais estáveis, sem evidência de disfunção orgânica — acompanhamento próximo, orientação ao paciente e retorno precoce se houver piora.
- Risco moderado: infecção com sinais iniciais de deterioração (p.ex., taquipneia, confusão leve, taquicardia); considerar encaminhamento para avaliação hospitalar sempre que houver qualquer sinal de disfunção ou falha de resposta ao manejo inicial.
- Risco alto: suspeita de sepse com disfunção orgânica ou choque séptico, ou deterioração rápida — encaminhamento imediato para serviço de urgência; iniciar medidas estabilizadoras disponíveis (hidratação venosa se indicado e sem contraindicações) e monitorar até a transferência.
Ao encaminhar, comunique claramente sinais vitais, tempo de evolução, comorbidades, medicações em uso, alergias, exames disponíveis e medidas já realizadas. Fluxos de encaminhamento direto para emergência reduzem atrasos.
Conjunto mínimo de avaliações na atenção primária
- História focalizada em tempo de evolução, sinais de infecção e fatores de risco.
- Exame físico completo com avaliação do estado mental, perfusão, função respiratória e hemodinâmica.
- Exames quando disponíveis: hemograma, creatinina, eletrólitos, PCR, lactato (se possível) e culturas antes de antibiótico quando não atrasar a terapia em casos graves.
- Avaliação de glicemia capilar e função renal/hepática conforme indicação clínica.
- Planejamento seguro de antibioticoterapia ambulatorial apenas quando indicado, com monitoramento e revisão conforme evolução.
Para orientação prática sobre escolha e duração de antimicrobianos, consulte material sobre prescrição racional de antibióticos e manejo de infecções respiratórias agudas para atenção primária.
Antibioticoterapia e stewardship na atenção primária
Quando a suspeita aponta para infecção bacteriana provável, a decisão de iniciar antibiótico deve equilibrar risco/benefício, gravidade clínica e padrões locais de sensibilidade. O princípio do stewardship antimicrobiano (uso racional de antimicrobianos) orienta seleção de agentes com espectro adequado, dose e duração apropriados, evitando tratamentos excessivamente amplos quando não necessários.
Práticas centrais de stewardship:
- Definir hipótese etiológica antes da prescrição sempre que possível.
- Avaliar alergias e possíveis interações medicamentosas e ajustar esquema em idosos e pacientes com insuficiência renal ou hepática.
- Coletar culturas quando indicado e revisar a terapia conforme resultados e resposta clínica.
- Registrar claramente indicação, dose e duração no prontuário e orientar o paciente sobre adesão e sinais de alerta.
Recursos práticos sobre prescrição e manejo estão reunidos em artigos sobre manejo de infecções respiratórias agudas e guias de prescrição racional ambulatorial.
Quando encaminhar: critérios práticos para atendimento de urgência
- Sinais de disfunção orgânica ou choque (alteração mental aguda, hipotensão persistente, lactato elevado se disponível, oligúria progressiva).
- Taquipneia persistente com SpO2 < 92% em ar ambiente ou piora apesar de oxigenoterapia.
- Hipotensão persistente (PAS ≤ 100 mmHg) associada a sinais de hipoperfusão.
- Comorbidades que aumentam risco de progressão (insuficiência renal, insuficiência hepática, imunossupressão, diabetes descompensado, gravidez).
- Falha de resposta a medidas iniciais no ambulatório (piora da freqüência cardíaca, queda da pressão arterial, piora do estado mental ou função respiratória).
Inclua no encaminhamento: tempo de evolução, sinais vitais recentes, comorbidades, alergias, medicações, resultados laboratoriais e terapias já iniciadas. Quando possível, comunique-se diretamente com o serviço de urgência para agilizar atendimento.
Abordagens específicas: populações especiais
Idosos e multimorbidades
Idosos podem não apresentar febre; confusão, queda funcional ou fraqueza súbita podem ser os primeiros sinais. Avalie função cognitiva, hidratação e função renal, e mantenha um limiar baixo para encaminhamento.
Imunossuprimidos
Pacientes em quimioterapia, com neutropenia ou em uso crônico de corticosteroides podem evoluir rapidamente para sepse mesmo com sinais pouco específicos. Nesses casos, priorize avaliação rápida, coleta de exames e baixo limiar para antibioticoterapia empírica apropriada e encaminhamento.
Gestantes
Sepse na gravidez é emergência obstétrica. Qualquer gestante com infecção suspeita e sinais de deterioração deve ser encaminhada imediatamente, com coordenação entre obstetrícia, infectologia e emergência.
Fluxos, comunicação e documentação na atenção primária
Fluxos de encaminhamento e comunicação com a rede de urgência
- Estabeleça um protocolo local com critérios objetivos de encaminhamento, ações imediatas no consultório e critérios de escalonamento.
- Disponibilize canais diretos com os serviços de emergência ou internação (telefone, telemedicina, triagem compartilhada).
- Padronize a documentação: sinais vitais, exame físico, hipóteses diagnósticas, medicações administradas e resultados de exames.
- Treine a equipe multiprofissional no reconhecimento precoce e no uso coerente de escalas de risco para evitar atrasos.
Comunicação com pacientes e familiares
- Explique de forma clara o que é sepse, por que os sinais de alerta exigem avaliação rápida e qual o plano de encaminhamento.
- Oriente sobre sinais de piora a serem observados em casa e quando retornar imediatamente.
- Esclareça sobre antibióticos: indicação, risco de uso inadequado e importância de completar o esquema quando prescritos.
Sepse na atenção primária: pontos práticos finais
Na atenção primária, a melhor estratégia para reduzir mortalidade por sepse é reconhecer sinais de alerta precocemente, estratificar o risco de forma pragmática (utilizando qSOFA e/ou MEWS/NEWS), decidir rapidamente sobre encaminhamento e aplicar princípios de stewardship antimicrobiano. Documentação clara e comunicação direta com os serviços de emergência aceleram o tratamento. Em suma: baixo limiar para escalonamento, coleta adequada de dados (incluindo lactato quando possível) e coordenação entre níveis de atenção são determinantes para melhores desfechos.
Referências rápidas e leitura adicional
- Orientações práticas sobre prescrição racional de antibióticos em infecções respiratórias.
- Guia de manejo prático de infecções respiratórias agudas na atenção primária.
- Conteúdo sobre prescrição racional ambulatorial e critérios de escolha de antimicrobianos.
Este post foi preparado para apoiar profissionais de saúde na prática diária e também para orientar pacientes sobre sinais de alerta, encaminhamento adequado e participação na otimização do cuidado de infecções que podem evoluir para sepse.