O que é detecção precoce de cardiotoxicidade com speckle-tracking
A ecocardiografia de deformação por speckle-tracking é uma ferramenta sensível para identificar lesão miocárdica precoce em pacientes submetidos a quimioterapia, terapias-alvo ou imunoterapia. Mesmo com fração de ejeção (FE) preservada, alterações no global longitudinal strain (GLS) podem sinalizar disfunção subclínica, permitindo intervenções de cardioproteção antes da perda funcional franca.
O que é speckle-tracking e global longitudinal strain (GLS)
A ecocardiografia de deformação avalia a deformação (strain) das fibras miocárdicas ao longo do ciclo cardíaco. O speckle-tracking rastreia padrões de textura (speckles) nas imagens 2D para calcular o GLS, que expressa em porcentagem quanto o ventrículo esquerdo encurta na direção longitudinal durante a sístole. Valores mais negativos indicam melhor função (ex.: −18% a −22% é habitualmente considerado normal), enquanto valores menos negativos ou declínio relativo em relação ao baseline sugerem disfunção.
Como o exame é aplicado na prática clínica
Na rotina onco-cardiológica, o speckle-tracking é incorporado ao ecocardiograma basal e às avaliações seriadas. O fluxo prático recomendado inclui:
- Avaliação basal: ecocardiografia completa com GLS e FE antes do início da terapia.
- Monitoramento periódico: repetições conforme o protocolo oncológico (por exemplo a cada ciclo, mensal ou trimestral, conforme risco e agente).
- Análise contextual: interpretar GLS junto com pressão arterial, pré-carga, sintomas e biomarcadores cardíacos (troponina, BNP/NT-proBNP).
- Intervenção precoce: ao observar declínio do GLS acima do limiar definido, discutir cardioproteção e ajuste terapêutico com a equipe oncológica.
O GLS é normalmente calculado por algoritmos semiautomáticos e requer validação pelo analista. Qualidade de imagem, equipamento e experiência do operador influenciam a reprodutibilidade.
Por que o GLS detecta cardiotoxicidade mais cedo que a fração de ejeção
A redução relativa do GLS de cerca de 12% a 15% em relação ao baseline é amplamente utilizada como sinal precoce de disfunção miocárdica induzida por tratamento oncológico. Em muitos casos, esse declínio precede a queda da FE, possibilitando:
- Início precoce de cardioproteção farmacológica (por exemplo, IECA/BRAs, betabloqueadores).
- Ajustes no regime oncológico em conjunto com o oncologista.
- Monitoramento intensificado com biomarcadores e imagem complementar.
O speckle-tracking também ajuda a diferenciar padrões de lesão (por exemplo, lesão por antraciclinas versus cardiotoxicidade inflamatória associada a imunoterapias), embora, em casos ambíguos, a ressonância magnética cardíaca possa ser necessária para caracterizar inflamação ou fibrose.
Métricas importantes: GLS, strain radial e circumferencial
As medidas mais usadas são:
- Global longitudinal strain (GLS): principal índice para monitoramento de cardiotoxicidade.
- Strain circumferencial e radial: complementares, úteis em cenários específicos, mas menos padronizados para acompanhamento oncológico.
- Reprodutibilidade: manter consistência de equipamento, protocolo e leitor para minimizar variabilidade.
Indicações clínicas e populações que se beneficiam
Speckle-tracking é recomendado para pacientes que recebem tratamentos com risco cardíaco aumentado, como:
- Antraciclinas (ex.: doxorrubicina) e outros agentes citotóxicos.
- Inibidores de tirosina quinase (TKIs), associados à disfunção ventricular em alguns casos.
- Imunoterapias (inibidores de checkpoint, terapia CAR‑T), que podem causar cardiotoxicidade inflamatória ou arritmias.
- Pacientes com fatores de risco cardiovascular pré-existentes ou histórico de doença cardíaca.
Interpretação prática e opções terapêuticas
Ao detectar declínio do GLS, as ações possíveis incluem:
- Iniciar ou intensificar cardioproteção com IECAs/BRAs e betabloqueadores.
- Ajustar dose ou calendário do agente oncológico após discussão multidisciplinar.
- Monitorar com maior frequência (ecocardiograma seriado, troponinas, BNP) e considerar ressonância cardíaca se houver suspeita de myocardite.
- Orientar o paciente sobre sinais de insuficiência cardíaca e importância do seguimento.
Limitações e cuidados técnicos
As principais limitações incluem dependência de carga hemodinâmica (pré- e pós-carga alteram strain), variabilidade entre plataformas e qualidade de imagem comprometida em obesidade, doença pulmonar ou presença de dispositivos. Padronização das aquisições apicais e taxa de quadros adequada é essencial.
Integração com biomarcadores e outras imagens
Para decisões clínicas, correlacione mudanças no GLS com biomarcadores cardíacos (troponina, BNP/NT‑proBNP), avaliação clínica e, quando indicado, ressonância magnética cardíaca. A integração entre cardiologia e oncologia (cardio-oncologia) é fundamental para balancear eficácia oncológica e proteção do miocárdio.
Fluxo de trabalho sugerido
- Etapa 1: avaliação basal (GLS + FE + biomarcadores quando possível).
- Etapa 2: monitoramento durante o tratamento com avaliações seriadas de GLS conforme risco e protocolo.
- Etapa 3: revisar alterações do GLS em reunião multidisciplinar para definir cardioproteção ou ajuste oncológico.
- Etapa 4: acompanhamento de longo prazo para pacientes com histórico de cardiotoxicidade, incluindo reabilitação cardíaca quando indicado.
Para suporte à prática, consulte conteúdos relacionados no mesmo portal, por exemplo sobre cardiotoxicidade induzida por imunoterapias, cardiotoxicidade associada a TKIs, reabilitação cardíaca e promoção da saúde cardiovascular.
Exemplos clínicos ilustrativos
Caso A: paciente em esquema com antraciclina; baseline GLS = −20%. Após algumas ciclos, GLS = −16,5% (declínio relativo ≈17%) com FE estável em 60%. Optou-se por iniciar betabloqueador e IECA, manter quimioterapia sob vigilância e monitorar troponina. GLS estabilizou em torno de −18% em 6 meses.
Caso B: paciente em uso de TKI e hipertensão; baseline GLS = −19% e, ao segundo trimestre, GLS = −15%. A equipe ajustou pressão arterial, iniciou cardioproteção e aumentou a frequência de acompanhamento por ecocardiograma e biomarcadores.
Resumo prático e recomendações finais
O speckle-tracking com GLS é uma janela precoce para detectar cardiotoxicidade associada a quimioterapia, TKIs e imunoterapias. Inclua avaliação basal, monitoramento seriado e integração com biomarcadores e equipe multidisciplinar (cardio‑oncologia). Ao identificar declínio relativo do GLS ≥12–15%, discuta cardioproteção e opções terapêuticas com a equipe oncológica. A padronização técnica e a comunicação clara com o paciente são fundamentais para preservar a função cardíaca sem comprometer o tratamento do câncer.