Doenças autoimunes na clínica geral: condutas iniciais
Introdução
Como reconhecer cedo uma doença autoimune na consulta geral? Fadiga persistente, febrícula, dor articular migratória e alterações cutâneas são queixas frequentes — mas inespecíficas. Identificar sinais orientadores e iniciar exames e condutas iniciais apropriadas reduz tempo até o diagnóstico definitivo, previne complicações e otimiza encaminhamentos. Este texto foca nas doenças mais comuns (como artrite reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico), no uso racional de medicamentos modificadores do curso da doença (MMCDs) e nos critérios práticos de encaminhamento.
1. Triagem clínica e sinais que não pode perder
História e exame físico direcionados
- Investigue padrão de dor articular (simétrica vs assimétrica), rigidez matinal >30 min, crepitação, nódulos subcutâneos e deformidades — pistas importantes para artrite reumatoide.
- Procure fotosensibilidade, lesões malar, úlceras orais, alopecia e sinais de envolvimento sistêmico sugerindo lúpus eritematoso sistêmico.
- Sintomas digestivos associados (diarreia crônica, perda de peso, má-absorção) levantam suspeita de doença celíaca ou de doenças inflamatórias intestinais — considere triagem inicial.
- Sintomas neurológicos focais ou episódios neurológicos transitórios demandam avaliação para esclerose múltipla e encaminhamento neurológico imediato; veja orientações em esclerose múltipla: diagnóstico e manejo.
Red flags que justificam ação urgente
- Comprometimento pulmonar (dispneia progressiva), renal (oligúria, edema) ou neurológico agudo;
- Sinais de vasculite extensa (ulcerações cutâneas, neuropatia periférica subaguda);
- Sintomas sugestivos de infecção em paciente em uso de imunossupressor — avalie prontamente.
2. Exames iniciais e interpretação prática
Exames laboratoriais básicos
Na suspeita de doença autoimune, solicite inicialmente:
- Hemograma completo, PCR e VHS — para avaliar inflamação e citopenias.
- Função renal e hepática (creatinina, ureia, transaminases) antes de iniciar MMCDs.
- TSH e hormônios tireoidianos se houver suspeita de doença de Graves ou tireoidite autoimune.
- Sorologias e triagem: ANA (se suspeita de lúpus), fator reumatoide e anti-CCP (para artrite reumatoide), anti-TTG e IgA total (para doença celíaca).
Interpretação prática: exames sorológicos isolados não confirmam diagnóstico — devem ser interpretados em conjunto com clínica e, quando indicado, exames complementares (imagem, biópsia, avaliação funcional).
Exames complementares direcionados
- Radiografia simples de mãos e punhos útil no rastreio de erosões em artrite reumatoide; ultrassom articular pode detectar sinovite precoce.
- Ressonância de crânio e coluna para suspeita de esclerose múltipla e encaminhamento para neurologia (veja: guia prático).
- Calprotectina fecal para diferenciar DII de causas funcionais antes de endoscopia invasiva; relacionar com o artigo sobre doenças inflamatórias intestinais.
3. Condutas iniciais e quando iniciar MMCDs
Princípios antes de prescrever MMCDs
- Confirme gravidade e impacto funcional: quanto maior o risco de dano tecidual irreversível, mais precoce a instituição de MMCDs (por exemplo, metotrexato em artrite reumatoide moderada a severa).
- Realize exames baseline: hemograma, creatinina, TGO/TGP, sorologia para hepatites B/C e teste de tuberculose (TST ou IGRA) antes de alguns agentes biológicos ou imunossupressores.
- Explique riscos, benefícios e necessidade de vacinação atualizada antes de iniciar imunossupressão; consulte orientações sobre vacinação para pacientes com comorbidades.
Critérios práticos para começar MMCDs na atenção primária
- Sintomatologia persistente >6 semanas com evidência inflamatória (rigidez matinal, PCR/VHS aumentados) e deterioração funcional — considerar início ou encaminhar para início rápido de MMCDs (p.ex. metotrexato) após avaliação básica.
- Presença de sinais estruturais progressivos (erosões radiográficas) ou múltiplas articulações afetadas — justificar terapia mais agressiva e encaminhamento ao reumatologista.
- Se houver suspeita de doença sistêmica com risco de órgão (rim, pulmão, SNC), não adie o encaminhamento e a introdução de terapia imunossupressora pela via hospitalar.
Para protocolos terapêuticos específicos, consulte as diretrizes nacionais, como o Protocolo da Artrite Reumatoide (Ministério da Saúde).
4. Encaminhamentos: quando e para quem
Indicações de encaminhamento ao especialista
- Diagnóstico incerto após investigação inicial ou testes conflitantes;
- Falha de resposta a condutas iniciais (ex.: persistência de atividade inflamatória apesar de dose adequada de MMCD por período terapêutico razoável);
- Comprometimento de órgãos vitais (p.ex. nefrite lúpica, pneumonite, vasculite de grandes vasos);
- Planejamento de terapia biológica ou imunomoduladores avançados; acompanhamento pré-concepção/gestação em pacientes com doença autoimune.
Encaminhe preferencialmente para reumatologia, imunologia, gastroenterologia ou neurologia conforme a predominância clínica. Para doença celíaca, associe avaliação e seguimento por gastroenterologia e assistência nutricional; veja material prático sobre doença celíaca em adultos.
5. Manejo de emergências associadas
Situações que exigem abordagem imediata
- Crises renais (ex.: glomerulonefrite rapidamente progressiva) ou insuficiência respiratória por alveolite — hospitalizar e iniciar avaliação imunológica urgente.
- Manifestação neurológica aguda (miastenia grave com crise bulbar, mielite aguda) — internação e contato com neurologia/terapia intensiva.
- Suspeita de síndrome hemofagocítica ou crise autoinflamatória severa — trabalho conjunto com centro terciário.
Em emergências, terapias iniciais frequentemente incluem corticosteroides em bolus e suporte hidroeletrolítico; entretanto, decisões sobre imunossupressores de amplo espectro ou plasmaférese devem ser coordenadas com especialista e centro de referência. Estudos e manuais abordam emergências em detalhes (ver revisão sobre emergências em doenças autoimunes).
6. Seguimento, monitorização e abordagens emergentes
Monitorização prática na atenção primária
- Agende revisão precoce (4–8 semanas) após início de tratamento para avaliar resposta clínica e efeitos adversos.
- Monitore hemograma e função hepática em pacientes em metotrexato; em caso de alteração, suspender e reavaliar com especialista.
- Atenção à saúde mental e fadiga crônica associada: integre triagem e manejo (veja suporte em saúde mental: triagem e manejo inicial).
Terapias emergentes e personalizadas
O campo evolui com terapias biológicas e pequenas moléculas dirigidas a caminhos imunes específicos, além de abordagens de medicina personalizada. Guias práticos sobre doenças autoinflamatórias e avanços terapêuticos podem orientar decisões futuras — consulte material didático como o Guia prático das doenças autoinflamatórias.
Fechamento e recomendações práticas
Na prática da clínica geral, adote um roteiro pragmático: 1) suspeitar com base em história e exame; 2) solicitar exames baseline (hemograma, PCR/VHS, função renal/hepática e sorologias direcionadas); 3) iniciar condutas sintomáticas e, quando indicado, MMCDs com monitorização inicial; 4) identificar sinais de gravidade e encaminhar com urgência para especialista. Mantenha comunicação ativa com reumatologia/imunologia e documente motivos do encaminhamento e terapias já instituídas. Aplicar essas medidas reduz o tempo até terapias modificadoras e melhora prognóstico e qualidade de vida dos pacientes.
Referências e leituras recomendadas: revisão geral sobre doenças autoimunes (Wikipedia), protocolo nacional de artrite reumatoide (APS-Repo) e manual prático de doenças autoinflamatórias (IAPO) — links integrados no texto.