Transtornos alimentares leves na atenção primária
Introdução
Você reconhece sinais iniciais de transtornos alimentares no consultório? Dados indicam que até 5% da população pode ser afetada e o diagnóstico precoce na atenção primária reduz riscos de agravamento. Este texto é um guia prático para profissionais: como reconhecer, avaliar inicialmente e decidir encaminhamentos.
1. O que são e como classificar
Transtornos alimentares englobam condições psiquiátricas com padrões alimentares disfuncionais que comprometem saúde física e mental. As apresentações mais comuns na prática são:
- Anorexia nervosa — restrição alimentar marcada, perda de peso, medo intenso de ganhar peso e distorção da imagem corporal.
- Bulimia nervosa — episódios de compulsão seguidos de comportamentos compensatórios (vômito, laxantes, jejum, exercício excessivo).
- Transtorno de compulsão alimentar periódica — episódios recorrentes de compulsão sem comportamento compensatório regular.
Fatores de risco são multifatoriais: predisposição genética, história familiar, fatores psico-sociais, pressão por padrões estéticos e comorbidades psiquiátricas. Para orientações específicas sobre abordagens de saúde mental na APS, a triagem estruturada é útil (veja o post sobre saúde mental: triagem e manejo inicial).
2. Reconhecimento e sinais de alerta no consultório
Sintomas e sinais clínicos
- Perda de peso significativa ou rápida, mudanças no padrão alimentar.
- Alterações menstruais (amenorreia), fadiga, intolerância ao frio.
- Sinais cutâneos e capilares (pele seca, cabelos frágeis), queda de cabelo.
- Distúrbios gastrointestinais: constipação, dor abdominal.
- Sinais de purgação: erosões dentárias, escoriações nas costas das mãos, uso de laxantes.
Use ferramentas de triagem breves como o SCOFF (pontos ≥2 sugerem investigação aprofundada) e avalie mudanças no crescimento/IMC em crianças e adolescentes com referência a curvas. Lembre-se: em pacientes com diabetes, os transtornos alimentares podem ter apresentações particulares — confira a diretriz da Sociedade Brasileira de Diabetes para detalhes clínicos e de manejo.
Quando considerar risco médico
- Bradicardia grave (<50 bpm em descanso), hipotensão sintomática ou síncope.
- Perda ponderal muito rápida (por exemplo, >10% em 3 meses) ou IMC muito baixo.
- Distúrbios eletrolíticos evidentes (hipocalemia, hiponatremia) ou desidratação.
- Comprometimento cardiovascular, arritmias ou alterações eletrocardiográficas.
- Intolerância alimentar com risco de hipoglicemia, especialmente em diabéticos.
3. Avaliação inicial prática na atenção primária
Anamnese e exame físico
Objetivos: identificar a modalidade do transtorno, avaliar gravidade médica e risco suicida, e detectar comorbidades. Itens-chave:
- História de peso/IMC, padrões alimentares, comportamentos compensatórios, uso de substâncias.
- Avaliação do estado cardiovascular (FC, PA, sinais de hipotensão ortostática), exame oral e pele, sinais de purgação.
- Avaliar estado mental: ideação suicida, ansiedade, depressão.
Exames iniciais sugeridos
Para orientar conduta e detectar complicações:
- Hemograma e eletrólitos (Na, K, Cl), ureia e creatinina.
- Glicemia, função hepática, cálcio, magnésio, fósforo.
- TSH/T4 livre (diferenciar condições endócrinas), e se indicado ECG para avaliar QT e arritmias.
Se houver sinais de desnutrição severa ou anormalidades eletrolíticas, priorize estabilização e encaminhamento urgente.
4. Critérios e caminhos de encaminhamento
Na atenção primária, o objetivo é manejar casos leves e identificar quando a atenção especializada é necessária. Encaminhe ao serviço especializado se:
- Presença de any risco médico acima descrito (bradicardia, hipotensão síntoma, eletrolíticos alterados, perda ponderal acentuada).
- Comorbidade psiquiátrica grave (ideação suicida, autoflagelação, depressão severa).
- Falha da intervenção na APS, recidiva após tentativas iniciais ou necessidade de internação nutricional/psiquiátrica.
Para modelos de atenção integrada, incluindo fluxos de encaminhamento e programas de referência, considere experiências locais e protocolos institucionais como o Programa de Atenção a Transtornos Alimentares (ver material acadêmico do HCPA como referência histórica). Também é válido articular teleconsulta com equipes especializadas quando a oferta local for limitada (veja telemedicina na atenção primária).
5. Manejo inicial e abordagem multidisciplinar
Para casos leves, a APS pode oferecer:
- Psicoeducação e acompanhamento breve com foco em segurança e reintrodução gradual de refeições.
- Encaminhamento para reabilitação nutricional com nutricionista; ajuste de metas realistas — recurso útil: post sobre nutrição na atenção primária.
- Apoio psicológico (terapia cognitivo-comportamental é eficaz para bulimia e compulsão alimentar); coordene com serviços locais de psicologia/psiquiatria.
Farmacoterapia tem papel limitado e específico: SSRIs podem reduzir episódios de compulsão e sintomas bulímicos; em anorexia, medicações não substituem a reabilitação nutricional e terapêutica. A decisão farmacológica deve contar com avaliação psiquiátrica.
6. Prevenção, educação e seguimento na APS
Atividades preventivas e de promoção na Atenção Primária incluem:
- Rastreamento oportunístico em adolescentes e jovens com perda de peso, alterações comportamentais ou sintomas depressivos.
- Educação familiar e educação terapêutica para adesão ao tratamento e reconhecimento precoce de recaídas (veja estratégias em educação terapêutica e adesão).
- Intervenções comunitárias que promovam hábitos alimentares saudáveis e reduzam estigma.
Para aprofundar riscos específicos em populações com comorbidades metabólicas (ex.: pessoas com diabetes), consulte a diretriz da Sociedade Brasileira de Diabetes que discute interseções clínicas e monitorização.
Fechamento: orientações práticas para o dia a dia
Na prática, mantenha baixo limiar para triagem: integre perguntas simples (SCOFF) à anamnese, peça exames básicos quando houver suspeita, e priorize a segurança (sinais vitais, eletrólitos, ECG). Casos sem risco médico podem ser acompanhados na APS com equipe multidisciplinar; qualquer sinal de instabilidade ou comorbidade grave justifica encaminhamento rápido. Use recursos locais e telemedicina para suporte especializado e articule acompanhamento nutricional e psicológico. Fontes e diretrizes citadas aqui (Artmed, EBSEH e Sociedade Brasileira de Diabetes) oferecem bases para atualização clínica e fluxos de encaminhamento.
Leituras e referências úteis: documento informativo do governo federal sobre a necessidade de tratamento precoce (EBSERH/gov.br), revisão sobre complicações clínicas (Artmed) e a diretriz da Sociedade Brasileira de Diabetes sobre transtornos alimentares em pessoas com diabetes.