Avaliação inicial da dor abdominal inespecífica na aps

Avaliação inicial da dor abdominal inespecífica na aps

Introdução

A dor abdominal inespecífica é uma das queixas mais frequentes na atenção primária e um desafio cotidiano: quando observar, tratar ou encaminhar? Este artigo descreve um fluxo prático e baseado em evidências para profissionais de saúde, com foco em anamnese estruturada, identificação de bandeiras vermelhas e ações imediatas de manejo clínico.

1. Anamnese e exame físico: passos essenciais

Uma investigação sistemática aumenta a acurácia do diagnóstico diferencial. Comece pela história dirigida e um exame físico focalizado.

Anamnese prática (perguntas-chave)

  • Característica da dor: localização, início súbito vs gradual, intensidade, caráter (cólica, contínua), duração e irradiação.
  • Relação com alimentação, evacuação, posição e uso de medicamentos (AINEs, anticoagulantes, opioides).
  • Sintomas associados: náuseas, vômitos, febre, diarreia, constipação, enterorragia, icterícia, disúria, sangramento vaginal.
  • Fatores de risco e história prévia: cirurgias abdominais, história de neoplasia, doenças inflamatórias intestinais, gravidez possível.

Exame físico dirigido

  • Avalie sinais vitais (taquicardia, hipotensão, febre) e grau de desconforto.
  • Inspeção: distensão abdominal, cicatrizes, sinais de trauma.
  • Palpação: localize pontos de sensibilidade, rigidez, defesa ou massas palpáveis.
  • Percussão e ausculta: retenção líquida, íleo, ruídos hidroaéreos.
  • Exame ginecológico e toque retal quando indicado (mulheres em idade reprodutiva ou sinais sugestivos de sangramento/obstrução).

2. Diagnóstico diferencial e interpretação de sinais de alarme

Na prática, diferenciar doenças gastrointestinais funcionais de causas orgânicas é crucial para o manejo inicial.

Principais grupos diagnósticos

  • Doenças funcionais: síndrome do intestino irritável, dispepsia funcional — frequentemente com padrão crônico e sintomas relacionados a alimentação/evacuação.
  • Doenças orgânicas abdominais agudas: apendicite, colecistite/litiase biliar, pancreatite, diverticulite, obstrução intestinal, úlcera perfurada.
  • Condições extraintestinais: infarto do miocárdio (dor epigástrica/inferior), pneumonia basal, cálculos renais, e causas ginecológicas (gravidez ectópica, torção ovariana).

Bandeiras vermelhas (encaminhar/avaliar imediatamente)

Qualquer uma das seguintes deve aumentar a suspeita de condição grave:

  • Instabilidade hemodinâmica (hipotensão, taquicardia significativa), sinais de choque.
  • Sintomas de peritonite: rigidez abdominal difusa, dor que impede mobilidade.
  • Febre alta persistente ou leucocitose marcada.
  • Sangramento digestivo, perda de peso inexplicada, anemia sideropênica recentementes diagnosticada.
  • Idade avançada com início agudo de dor, história de neoplasia, uso crônico de imunossupressores.
  • Mulheres em idade fértil com possibilidade de gravidez — sempre fazer teste de gravidez (beta-hCG) antes de solicitar imagem ou tratar.

3. Investigação inicial e conduta prática na atenção primária

Na ausência de bandeiras vermelhas, o manejo pode ser ambulatorial com reavaliação planejada. Se houver sinais de alarme, encaminhe para emergência ou especialista conforme o quadro.

Exames complementares iniciais (quando indicados)

  • Exames laboratoriais básicos: hemograma, PCR, glicemia, eletrólitos, função renal; urina tipo I e teste de gravidez em mulheres em idade fértil.
  • Enzimas pancreáticas (amilase/lipase) se suspeita de pancreatite.
  • Exames de imagem: a ultrassonografia abdominal costuma ser a primeira escolha para dor em quadrante superior e suspeita biliopancreática; a ultrassonografia à beira do leito pode orientar decisões imediatas — veja nosso guia prático de ultrassonografia beira-leito.
  • Quando a indisposição persistir ou houver dúvidas diagnósticas, considerar encaminhamento para tomografia abdominal ou avaliação cirúrgica.

Manejo sintomático e orientações no consultório

  • Alívio da dor: iniciar com paracetamol; usar AINEs com cautela (riscos gastrointestinais/renal) e evitar opioides quando possível.
  • Antiespasmódicos ou antieméticos conforme sintomas predominantes.
  • Educação e manejo clínico: explique provável natureza funcional quando aplicável, explique sinais que exigem retorno imediato e fixe um retorno para reavaliação em 48–72 horas ou conforme evolução.

Quando suspeitar de condição funcional

Sinais que apontam para doenças gastrointestinais funcionais incluem dor crônica intermitente, ausência de bandeiras vermelhas, sintomas relacionados ao hábito intestinal ou alimentação e exames básicos normais. Nesses casos, estratégias de auto-cuidado, orientações sobre dieta, controle do estresse e acompanhamento longitudinal costumam ser adequados. Para manejo específico de dispepsia no nível primário, recursos práticos estão disponíveis em nossas recomendações sobre dispepsia e refluxo.

4. Encaminhamento e seguimento

Encaminhe ao pronto-socorro ou especialista quando persistirem dúvidas diagnósticas com sinais de gravidade, ou houver necessidade de imagem avançada ou intervenção (por exemplo, suspeita de apendicite, colecistite, obstrução intestinal, gravidez ectópica ou hemorragia).

Organize seguimento ambulatorial com segurança, documentando orientações de safety-netting: quando retornar, sinais de piora e quem contatar fora do horário.

Leitura adicional e evidências

Para atualização e protocolos de diferenciação entre causas funcionais e orgânicas consulte o guia do Departamento de Gastroenterologia da SBP, que aborda recomendações práticas e triagem: Guia SBP sobre dor abdominal crônica. Discussões sobre manejo em populações específicas (crianças) e dispepsia na atenção primária podem ser consultadas nos artigos de referência clínica: manejo pediátrico e dispepsia na atenção primária.

Para fluxos práticos e modelos de consulta sobre queixas gastrointestinais inespecíficas, confira também nosso material interno: avaliação básica de queixas gastrointestinais inespecíficas, o resumo de abordagem prática em ambulatório e recomendações complementares em abordagem prática (dor abdominal inespecífica).

Fechamento prático

Na atenção primária, uma abordagem estruturada — história dirigida, exame físico focal, pesquisa objetiva de bandeiras vermelhas, exames básicos selecionados e imagens direcionadas — permite diferenciar rapidamente causas funcionais de orgânicas e tomar decisões seguras. Quando em dúvida, priorize a estabilidade clínica do paciente e encaminhe para investigação especializada. A combinação de orientações clínicas claras, manejo sintomático responsável e follow-up programado reduz encaminhamentos desnecessários e melhora desfechos.

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