Manejo prático de dispepsia, refluxo e constipação
Introdução
No consultório de atenção primária, quantas consultas por semana envolvem queixas como dor epigástrica, azia ou evacuação difícil? Essas queixas — frequentemente dispepsia, refluxo gastroesofágico e constipação — são muito prevalentes e impactam a qualidade de vida. A seguir apresento uma abordagem prática, orientada por evidências e diretrizes internacionais, para diagnóstico, tratamento e encaminhamento.
1. Diagnóstico: critérios, triagem e sinais de alarme
Dispepsia
Definição clínica: desconforto ou dor na região epigástrica, sensação de plenitude pós-prandial, saciedade precoce, náuseas ou distensão. Diferencie dispepsia funcional (sem causa orgânica identificável) de dispepsia orgânica (úlcera péptica, gastrite, malignidade).
- Sinais de alarme que justificam investigação imediata: perda de peso não intencional, disfagia, vômitos persistentes, anemia microcítica, sangramento gastrointestinal, histórico familiar de câncer gástrico.
- Testagem para Helicobacter pylori: indicada em pacientes com dispepsia não investigada em locais com prevalência considerável; se positiva, tratar. Veja recomendações práticas sobre H. pylori no conteúdo sobre infecção por Helicobacter pylori: diagnóstico, tratamento e prevenção.
- Endoscopia: reservada para pacientes com sinais de alarme ou >55 anos (idade de corte pode variar por região) ou falha terapêutica.
Refluxo gastroesofágico (RGE)
Sintomas típicos: azia e regurgitação ácida. Sintomas atípicos (tosse crônica, laringite, dor torácica) exigem avaliar com atenção.
- Teste diagnóstico inicial em consultório: avaliação clínica e tentativa terapêutica com IBP (inibidor da bomba de prótons) por 4–8 semanas em sintomas típicos sem sinais de alarme.
- Sinais de alarme (mesmos descritos acima) → endoscopia. Persistência apesar de IBP otimizado → encaminhar para pHmetria e/ou manometria conforme suspeita.
Constipação
Definição comum: eliminações infrequentes (geralmente <3/semana), esforço intenso, fezes endurecidas ou sensação de evacuação incompleta. Classifique entre constipação funcional e secundária (medicamentos, metabólicas, neurológicas).
- Avaliar medicamentos (opióides, anticolinérgicos, ferro), histórico dietético e sinais de alarme (sangramento, perda de peso, alteração súbita no padrão) que indicam investigação adicional.
- Suspeita de disfunção do assoalho pélvico → testes funcionais e encaminhamento para fisioterapia especializada.
- Idade e sinais que exigem colonoscopia: considere rastreio e investigação do câncer colorretal quando indicados.
2. Tratamento baseado em evidências: estratégias práticas no ambulatório
Dispepsia
- Se suspeita de H. pylori: testar e tratar quando positivo. O tratamento erradica a causa em casos de úlcera e reduz sintomas em alguns pacientes com dispepsia não ulcerosa.
- Dispepsia funcional: terapias dirigidas aos sintomas — inibidores de bomba de prótons (IBP) para pacientes com predominância de azia/queimação; procinéticos em sintomas de plenitude e náuseas (uso segundo perfil de efeitos adversos). Antidepressivos tricíclicos em baixas doses podem ajudar em casos refratários com componente visceral sensitivo.
- Educação e alterações no estilo de vida (redução de alimentos gatilho, refeições fracionadas, redução de álcool/tabaco) são fundamentais.
- Para orientações práticas rápidas, o artigo do blog sobre dispepsia — abordagem prática para profissionais complementa este protocolo.
Refluxo gastroesofágico
- Medidas iniciais: elevar cabeceira da cama, evitar refeições copiosas antes de deitar, reduzir peso em pacientes obesos e evitar tabaco/álcool. Essas medidas são recomendadas pelas diretrizes e úteis como primeira linha.
- Terapia farmacológica: curso teste com IBP (ex.: omeprazol 20–40 mg/dia) por 4–8 semanas; se responder, considerar estratégia de manutenção intermitente ou de menor dose conforme frequência dos sintomas.
- Falha terapêutica ou sintomas atípicos persistentes: encaminhar para endoscopia e testes funcionais (pHmetria, manometria) para definir doença por refluxo não erosiva, refluxo funcional ou outras causas.
- Cirurgia ou terapias endoscópicas: considerar em doentes selecionados com refluxo comprovado e má resposta ou intolerância à terapêutica clínica — encaminhar para gastroenterologia/ cirurgia.
Constipação
- Medidas não farmacológicas: aumento gradual de fibra dietética (se paciente tolerar), hidratação adequada e orientação à atividade física regular.
- Tratamento farmacológico escalonado: primeiro-line são laxantes osmóticos (p.ex. polietilenoglicol/PEG). Laxantes formadores de bolo podem ser usados se não houver contraindicação. Laxantes estimulantes (p.ex. senna) são úteis em curto prazo ou como complemento em falha terapêutica.
- Constipação refratária: considerar agonistas de receptores guanilatato-ciclase ou pró-cinéticos específicos conforme disponibilidade e indicação; avaliar para doença estrutural ou disfunção do assoalho pélvico e encaminhar para investigação especializada.
3. Prevenção, complicações e orientações práticas para o consultório
Prevenção e educação
- Oriente sobre dieta equilibrada, controle do peso e cessação do tabagismo: medidas com impacto tanto em refluxo quanto em dispepsia.
- Rever medicações que possam agravar sintomas (AINEs e anticoagulantes em dispepsia; opioides e anticolinérgicos em constipação).
Complicações a vigiar
- Para RGE: risco de esofagite, estenose e esôfago de Barrett em casos crônicos; monitoramento e endoscopia conforme diretrizes.
- Para dispepsia orgânica: úlceras pépticas e risco de sangramento em pacientes em uso de AINEs ou com H. pylori ativo.
- Para constipação: impactação fecal, fissuras e hemorroidas; impacto funcional e risco de declínio de mobilidade em idosos.
Fluxo de decisão rápido (prático para consulta)
- Avalie sinais de alarme → se presentes, solicite exames imediatos (hemograma, endoscopia ou colonoscopia conforme quadro) e encaminhe.
- Sem sinais de alarme e sintomas típicos de refluxo → tentar IBP por 4–8 semanas; reassess e considerar manutenção ou investigação avançada.
- Dispepsia sem alarme → testar e tratar H. pylori (se prevalência local justificar) ou tratamento sintomático e monitoramento; endoscopia se não responder.
- Constipação → iniciar medidas não farmacológicas e laxante osmótico; avaliar medicamentos e comorbidades; investigar se refratário ou sinais de alarme.
Diretrizes e evidências
As recomendações acima são consistentes com diretrizes internacionais recentes; por exemplo, as orientações da World Gastroenterology Organization para distúrbios gastrointestinais comuns, para doença do refluxo gastroesofágico e para constipação. Consulte essas diretrizes para recomendações por região, diagnósticos diferenciais e algoritmos detalhados.
Fechamento e insights práticos
No consultório, priorize: 1) identificar sinais de alarme, 2) aplicar intervenções não farmacológicas e otimizar medicações, 3) usar teste-terapia racional (por exemplo, IBP no refluxo típico) e 4) indicar investigação complementar quando houver falha terapêutica ou sinais de gravidade. Para casos específicos, utilize conteúdos de apoio do blog, como o guia prático sobre dispepsia, e revisite as recomendações de H. pylori e gastrite em infecção por H. pylori e gastrite crônica. Aderir a protocolos baseados em evidências reduz atrasos diagnósticos e melhora resultados funcionais e de qualidade de vida.
Referências rápidas: diretrizes WGO sobre distúrbios gastrointestinais comuns, RGE e constipação (links incorporados no texto).